Como Nuno Mendes pôs Londres a comer peixinhos da horta
Há um ano os londrinos sabiam pouco ou nada sobre cozinha portuguesa. Mas Nuno Mendes achou que havia espaço para a mostrar, abriu a Taberna do Mercado, formou vários chefs, publicou receitas no Guardian e está a preparar um livro.
O que significa “amanteigado”? O que é um bolo do caco? E uma ginjinha? “Bulhão Pato” será um prato de carne? Quem foi o Abade de Priscos? E o que quer dizer a palavra “petiscos”?
O menu que nos passam para as mãos na Taberna do Mercado, o restaurante português que Nuno Mendes abriu em Londres, no Old Spitalfields Market, no Verão de 2015, vem com explicações para que quem nada sabe de cozinha portuguesa não fique perdido na hora de escolher.
Porque, na verdade, quem nada sabe de cozinha portuguesa são praticamente todos os clientes que aqui entram. E se alguém começou a mudar a imagem que a gastronomia de Portugal tinha em Londres – ou melhor, a quase absoluta ignorância que existia em relação a ela até há pouco tempo – esse alguém é Nuno Mendes (e na cozinha da Taberna, o seu chef executivo, António Agapito).
“Achei que estava na altura de apresentar esta cozinha como cozinha portuguesa. Já antes vários chefs tentaram chamar-lhe ibérica, ligando-a à espanhola, como para acariciarem as pessoas a habituarem-se a ela. Mas acho que isso não resultou e quis ir precisamente no sentido contrário: mostrar a diversidade que tem, a riqueza, as influências e como é diferente da espanhola”, explica Nuno Mendes.
Não é na Taberna que nos encontramos mas sim às oito da manhã no café por baixo da casa onde mora, em East London, o lugar da cidade que adora e cujo panorama gastronómico, vem, desde há alguns anos, a ajudar a transformar, depois de ter viajado pelo mundo e vivido nos Estados Unidos. “Foi ali, do outro lado da rua, que abri o The Loft, sabia?”, pergunta, falando do projecto com que tudo começou, um fine dining num apartamento numa zona da cidade onde, antes disso, ninguém se lembrava de ir para comer bem.
O Loft, com a sua cozinha experimental, menus originais e arrojados e chefs convidados, foi uma aventura que acabou por levar, em 2010, ao Viajante, com o qual Nuno recebeu uma estrela Michelin e conquistou o 59.º lugar na lista dos 50 Melhores Restaurantes do Mundo, da revista Restaurant.
Mas já voltamos atrás para conhecer melhor toda a história. Para já, vamos voltar a ouvir Nuno falar da Taberna. “Quis apresentar produtos e ideias que se calhar se ligam mais às nossas viagens pela China ou à nossa presença em Goa, África ou no Brasil. Quis apresentar mais a nossa riqueza cultural do que a proximidade com Espanha e fazer uma cozinha que fosse diferente, excitante.”
O menu é escrito numa mistura de português e inglês, dos “prawn rissóis” ao “bife prego” precisamente para despertar a curiosidade. “Temos que ser gentis com as pessoas, nunca podemos forçar a ideia”, diz. “Se ficam curiosas e querem saber mais, podemos aprofundar o discurso.” A ideia aqui não é apenas explicar os pratos. “Quero passar o que é o produto português, os nossos queijos, os nossos enchidos, as especiarias, o mel”.
Essa foi uma vontade que começou a crescer em Nuno há muito tempo. Primeiro no Loft, de forma ainda tímida. A portuguesa Ana Gonçalves, que decidiu trocar o design gráfico pela cozinha, chegou a Londres, fez uma rápida pesquisa e percebeu logo que “entre os portugueses, com influência e projecção, era o Nuno”. Foi estagiar para o Loft e continuou em todos os projectos que se seguiram, do Viajante, até ao Chiltern Firehouse, do qual saiu no ano passado para, com o namorado, Zijun Meng, criar um projecto próprio, o TA TA.
“O Nuno sempre quis dar a conhecer a cozinha portuguesa. Os pratos dele tinham essas duas direcções, a asiática e a portuguesa”, conta Ana. Os portugueses – e eram muitos – na cozinha do Viajante reconheciam sempre o toque português que aparecia aqui e ali.
Essencial para que essa ligação com Portugal se aprofundasse foi Leandro Carreira, que trabalhava no Mugaritz, em Espanha, quando conheceu Nuno. Mais tarde, numa visita a Londres, decidiu ficar e entrou no Viajante quando este tinha um ano de vida. “Começámos a mudar algumas coisas, juntámos um bocado aquela força lusa”, diz, sorrindo. “Sempre partilhámos a ideia de que há tanto por explorar na nossa história, na cozinha portuguesa, na forma de trabalhar os produtos, os sabores.”
Eddie Pelicano, hoje chef do Portland, que oito meses depois de abrir recebeu uma estrela Michelin, passou por essa “escola Nuno Mendes” e, não sendo português, aprendeu muito sobre a cozinha de Portugal. Recorda que o Viajante “era um lugar onde todos os chefs queriam trabalhar, onde todos os foodies queriam ir comer, porque não se parecia com nada do que os outros estavam a fazer em Londres.”
Nuno confirma: “Há dez anos Londres era um bocado parada. Em Central London já se via uma coisa aqui e ali mas era muito aborrecido. Não havia restaurantes independentes com uma cozinha criativa a um preço acessível, onde a energia que se vivia na rua se reflectia dentro do restaurante.” Ele percebeu que era em East London que essa energia existia. E tinha razão. “Há vinte anos as pessoas tinham medo de vir para aqui. Hoje é das zonas mais interessantes da cidade, com artistas a viver, galerias de arte, restaurantes criativos.”
A cozinha de Nuno era diferente, continua Eddie. “Eram sabores mais limpos. Na altura toda a gente usava muita manteiga, mas ele achava que escondia o sabor natural dos ingredientes. Nuno criava pratos limpos, frescos, sempre com algo de interessante.” Os ingredientes portugueses apareciam naturalmente. Recorda “uma coisa chamada amêijoa, mas que ele fazia com um twist, tornando-a num gel que servia no início da refeição.”
O Viajante era “uma pequena família”, como diz Nuno. Eddie reforça: “Ele era muito aberto, permitindo que os chefs contribuíssem com ideias, isso é muito importante porque quando se é jovem há sempre um certo medo de criar pratos e dá-los a outros para experimentar. Ali foi o primeiro passo que dei para criar os meus pratos.”
Não era “aquela cozinha old school, cheia de regras, dos outros restaurantes”, acrescenta, por seu lado, Ana. “A cozinha do Nuno era orgânica e livre, sem tantas regras, um dia podia ser uma coisa, no outro era diferente.”
Durante as refeições do pessoal, conta ainda Ana, os portugueses na cozinha faziam migas ou açorda ou arroz de marisco ou um peixe grelhado com arroz de coentros, e os outros ficavam sempre encantados com aqueles pratos. Muitos aprenderam a usar bacalhau seco, massa de pimentão, porco ibérico.
Quando a Taberna abriu, houve quem gostasse e quem não gostasse, como em tudo (provocou indignação em Portugal na altura a crítica negativa, e desagradável, de Giles Coren no Times). Mas, sobretudo, começou-se a falar da comida portuguesa e já era possível ler-se sobre rissóis ou pudim Abade de Prisco nos jornais britânicos. Ana recorda-se do entusiasmo com que eram recebidas as fotos de pastéis de nata colocadas no Instagram ou no Facebook.
“Nuno foi reconhecido primeiro pela sua sofisticada cozinha experimental no Loft e no Viajante”, afirma Xanthe Clay, jornalista do The Telegraph especializada em comida. “As pessoas pronunciavam mal Viajante, dando ao “j” o som de um “h” espanhol. Pensavam que era espanhol e foi uma surpresa descobrir que era português. Fomos à Taberna porque adorávamos o Viajante e porque sentíamos que Nuno tinha regressado a casa, fazendo comida com o coração. Abriu os olhos das pessoas para a verdadeira comida portuguesa – não a comida pesada, gordurosa e pouco sofisticada que se encontra nos raros restaurantes ‘portugueses’ de Londres. A de Nuno é rústica, sim, mas com integridade, subtileza e um sabor muito diferente da do seu primo ibérico. Acho que estamos a começar a perceber como pode ser boa a comida de Portugal.”
“A percepção que havia da comida portuguesa era muito pobre”, explica Leandro. “Para muitos, Portugal é Lisboa, Algarve, pastéis de nata e vinho do Porto.” Havia, claro, alguns restaurantes tradicionais, mas a Taberna tem uma aproximação à comida diferente.”
“A Taberna mudou 100% a forma como as pessoas vêem a comida portuguesa em Londres, sem dúvida”, confirma Eddie. “Ninguém sabia exactamente o que era esse tipo de comida e, tendo o Nuno um nome tão importante, toda a gente queria experimentar. E ficaram encantados. Claro que é muito diferente e é preciso ter muita coragem para fazer uma coisa diferente.” O pudim Abade de Priscos, por exemplo, foi uma surpresa – “uma sobremesa que tem gordura de porco, as pessoas dizem que é uma maluquice mas adoram.”
Depois, Nuno foi convidado para escrever uma coluna no The Guardian e começou a apresentar receitas portuguesas – entre as primeiras estava aquela que é um dos maiores sucessos da Taberna, os peixinhos da horta com molho Bulhão Pato. Também aí houve todo o tipo de reacções. “Em geral as receitas foram bem recebidas”, afirma Nuno. “Mas não são o tipo de receitas que se vêem nos jornais todos os dias, é diferente do que se espera. São mais arrojadas.”
A partir daqui, as portas estão (um pouco mais) abertas. “Não vim definir o que a cozinha portuguesa é, mas pelo menos abrir a porta a anunciar que existe. Apresentámos o conceito, agora cabe-nos continuar a desenvolvê-lo”, afirma. “Tentei mostrar, por exemplo como o arroz que fazemos é muito diferente da paella ou do risotto, mostrar produtos que as pessoas conhecem mas que tratamos com uma identidade própria. Agora há espaço para começar a puxar por essas identidades.”
Entusiasma-se e prossegue: “Tinha piada, por exemplo, abrir um restaurante alentejano. Acho que era ambicioso mas possível. Já há espaço. Não é preciso pôr uma bandeira à porta, mas já se pode apostar nisso.” E – já se tinha descrito como um homem “com quatro full-time jobs” – despede-se. Tem uma reunião com a editora com a qual está a preparar um livro para editar possivelmente em Março próximo. Sobre cozinha portuguesa, claro.