Amor e nenhuma cabana

O bardo virou bardo ciborgue, mas continua no domínio do sublime. Justin Vernon encontrou nas pessoas a solução para as suas dúvidas existenciais. E fez um disco “radical”.

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 ____45_____, a penúltima canção de 22, A Million, não seria a mesma se os Bon Iver não tivessem inventado um instrumento a que chamaram Messina. Em ____45_____, o Messina liga o saxofone de Michael Lewis ao teclado de Justin Vernon. É o teclado que comanda o fluxo do saxofone, é o saxofone que alimenta o teclado. Um instrumento sem o outro é só um objecto mudo – são as pessoas que lhes dão voz.

O Messina é uma poderosa metáfora do que foi preciso para que Bon Iver, Bon Iver (2011) tivesse um sucessor. O Messina não funciona sem duas pessoas. Também 22, A Million só existe porque Justin Vernon, o líder dos Bon Iver, se rodeou de pessoas.

Bon Iver, Bon Iver ganhou o Grammy de Melhor Álbum Alternativo e levou as canções frágeis de Vernon e companhia, tratados de melancolia e sensibilidade indie, ao grande público. Vernon agradeceu o sucesso, mas fartou-se das suas consequências negativas: dias passados ao telefone com jornalistas, retratos fotográficos atrás de retratos fotográficos, festival atrás de festival. Exausto, farto do comércio, chegou a anunciar que Bon Iver ficaria em pousio.

Apostado em limpar a cabeça, decidiu fazer umas férias sozinho em Santorini, uma ilha grega. Mas deu por si isolado, cercado pelos seus problemas. Mais tarde, ser-lhe-ia diagnosticada uma depressão. “Foi um período muito mau. Estava incrivelmente aborrecido, em constante pânico, às voltas numa cidade no meio do oceano durante uma semana”, contou à revista Uncut.

Foi numa destas voltas em Santorini que lhe surgiu uma frase: “It might be over soon”. O que queria isso dizer? “As coisas más podem acabar em breve, mas talvez as coisas boas também acabem em breve”, revelou ao New York Times. “Por isso, o melhor é descobrires como podes aproveitar esta vida e participar nela.”

Gravou a frase num sampler portátil, manipulando-a muitas vezes nos meses seguintes. Estava ali a semente de 22, A Million. Ouvimo-la no início de 22 (OVER S∞∞N). É um quadro só aparentemente estável em que se vão colocando as peças: a voz de Vernon, hoje com 35 anos, tão imaculada como dantes, mesmo que frequentemente processada, breves detalhes de guitarra, um pedaço orquestral que dura pouco, um saxofone solto, um sample da cantora gospel Mahalia Jackson e a espaços, aquele aviso: “It might be over soon”. Há aqui uma canção, mas seria igualmente certo chamar-lhe o fantasma de uma canção.

22, A Million é uma colecção de canções como esta: estranha, de retalhos, feita na corda bamba da glória e do colapso.

Gritar e partir cadeiras

Em vez de se esconder do mundo e fazer canções numa cabana rural de Wisconsin (For Emma, Forever Ago, de 2007, nasceu assim), Justin Vernon rodeou-se de pessoas. Os Bon Iver enfiaram-se no estúdio April Base, propriedade de Vernon nos arredores de Eau Claire, e tocaram, tocaram sem parar numa torrente de criatividade.

Com horas de gravações, parte importante do trabalho esteve na edição, no corte e na costura – uma labuta de equipa com pontos de contacto como a que Vernon experimentou em Yeezus (2013), disco de Kanye West no qual o líder dos Bon Iver é uma das vozes mais fortes.

22, A Million usa e abusa do Auto-Tune e outros truques de manipulação, particularmente audíveis na voz de Vernon – o outrora bardo em falsete é hoje um bardo ciborgue em falsete em só aparente auto-sabotagem, alguém que é capaz de gravar uma canção em cima de uma cassete de Neil Young para garantir um certo nível de distorção, alguém que, jura, multiplicou por 150 as camadas de saxofone numa faixa. O resultado não são bizarrias: são canções triunfantes e ricas, um vocabulário inteiramente novo, 100% Bon Iver.

Ouça-se 33 “GOD”, uma das melhores canções de sempre dos Bon Iver: um piano guia-nos, ouvimos um banjo, Vernon ocupa o primeiro plano e há vozes marcianas a querer cantar com ele até que a canção se agiganta com bateria e baixo tempestuosos e o que parecem ser sintetizadores a perderem-se numa nuvem de hélio (ufa!). 29 #Strafford APTS, belíssima cantiga de guitarra acústica e chuvinha de piano, é um momento de beleza quase impoluta, não fossem os segundos em que a voz parece querer desaparecer – será a cassete de Neil Young a dar de si?

Foi com 10 d E A T h b R E a s T ? ? que percebeu por onde queria ir. A canção, que parte de um loop de bateria distorcidíssimo, constrói uma ponte entre as batidas esculpidas a partir de maciços de ruído de Yeezus e o gospel, imaginando o que poderiam ser hoje os TV on the Radio. “A batida fez-me levantar da cadeira, fez-me querer parti-la, esmagar alguma coisa ou fazer algo que tivesse um som agressivo”, disse numa conferência de imprensa, no início de Setembro, em Eau Claire, a sua terra-natal, no estado do Wisconsin. Três anos depois, a canção estava feita.

Não partiu cadeiras, mas podia tê-lo feito se isso servisse uma canção – “samplou” gospel, Lonnie Holley, uma cantoria de bastidores de Stevie Nicks apanhada no YouTube, trompetes free jazz (gravados em Portugal). “Precisava que soasse um pouco radical para que me sentisse bem por lançar algo de novo para o mundo”, explicou. “Não os acho embaraçosos, mas os discos antigos têm uma natureza triste – estava a curar-me através daquela música. Estar triste com algo é normal. Chafurdar nisso, repetir os mesmos círculos emocionais torna-se apenas aborrecido. Neste novo disco, há ainda algumas coisas negras, mas penso ser mais sobre partir coisas, sobre fazer coisas bombásticas e excitantes e também novas. Misturar coisas, explosividade e gritar mais, acho que era essa a zona. Gritar. Sussurrar era talvez o que fazia antes.”

Se antes parecia querer estar sozinho, agora quer estar com pessoas, ser parte de comunidades: a de músicos que o ajudaram a fazer este disco; a dos quase 70 mil habitantes de Eau Claire, cidade na qual acredita (organizou a conferência de imprensa num novo hotel em que investiu; fez uma listening party do novo álbum numa loja de discos local); a de fãs, que procura reunir anualmente no festival de música e artes Eaux Claires – foi lá que, em Agosto, os Bon Iver apresentaram o álbum pela primeira vez, ao lado de experimentalistas indonésios, gente do black metal, Erykah Badu, entre outros.

00000 Million fecha o disco em triunfo: é uma sublime peça de piano e voz, um hino. “O último álbum era sobre sítios”, explicou Justin Vernon à Uncut. “Este é sobre pessoas. Onde quer que esteja, a única coisa que faz esse sítio bonito são as pessoas. Em vez da majestosidade da natureza, este disco vive mais da majestosidade das nossas naturezas.”

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