Terrence Malick filma para a filosofia de Imax, Pablo Larraín filma para os Óscares
Voyage of Time, documentário do realizador norte-americano, e Jackie, biopic do realizador chileno, foram apresentados em Veneza.
Em Cannes foi Neruda. Em Veneza é Jacqueline Kennedy. No filme anterior, o chileno Pablo Larraín ainda podia defender que trocava as voltas ao biopic de celebridades convencional, chutando para fora a hagiografia, até porque fazia do poeta chileno e Nobel da Literatura uma figura de narcisismo flácido, obcecado pelo seu mito.
De acordo, mas estava sobretudo intoxicado pelas possibilidades plásticas do que se jogava ali, o filme era maneirista e anunciava sempre algo a que não se atirava completamente, ficava a boiar na afectação. Anunciava-se de facto alguma coisa nesse querer jogar com superfícies: que o realizador de Tony Manero (2008) e de Post-Mortem (2010) estava a querer abrir o seu trabalho, conhecido pela densidade e opacidade, a um outro patamar de visibilidade.
Confirma-se com Jackie, que chegou cheio de hype e o folclore de prognóstico de Óscares ao concurso de Veneza: é mais um movimento de recuo para a superfície de Pablo Larraín. Anunciado inicialmente como projecto de Darren Aronofsky com Rachel Weisz, que entretanto se retiraram do projecto, foi parar a Larraín a convite de Aronofsky, que era jurado em Berlim quando o chileno ali apresentou O Clube (2015), e é agora produtor.
Jackie não é maneirista, nem sequer afectado, é todo ele consumido a reconstituir. Não a vida de Jacqueline Kennedy, que como diz Larraín, deve ser a mais desconhecida das pessoas conhecidas do século XX, mas os quatro dias a seguir ao assassinato de John Fitzgerald Kennedy: de Dallas, 22 de Novembro de 1963, a Washington, Catedral de St. Matthews, 25 de Novembro de 1963. Natalie Portman é Jackie, Caspar Phillipson é o Presidente, Peter Sarsgaard é Robert F. Kennedy, o Attorney General.
O centro do filme é o encontro de Jackie com um jornalista, para uma entrevista nos dias a seguir ao funeral em que passou de Primeira Dama a Viúva e se tornou iconografia perante o olhar emocionado do mundo.
Esse formato da entrevista é habitual no biopic. Jogo de gato e rato entre entrevistador e entrevistado a que o espectador tem acesso como se lhe fosse permitido penetrar os bastidores da História, é aí que “Jackie” começa a celebrar o seu contrato com a convenção e com a obrigação de dar a ver a partir da digressão emocionalmente crítica da sua personagem: Dallas, o avião de regresso a Washington com o caixão, em que Lyndon Johnson faz o seu juramento como novo Presidente, a relação com Bobby, os filhos, Caroline e John John, mas também a forma como Jackie abriu as portas da Casa Branca aos americanos com a série televisiva em que se apresentou como gestora de um património do “povo” - Jackie utiliza imagens de arquivo e simula imagens de arquivo.
Longe do Chile
Fundamentalmente, o contrato do filme é “dar a ver” o corpo e os maneirismos de Jackie, como aquela voz particular que se fazia ouvir de maneira diferente em público e em privado. O esforço muito esforçado de Portman está sempre em evidência e nele o filme consome parte da sua energia para responder ao voyeurismo do espectador – mas não é seguro que haja ali personagem dentro, o que é diferente de ser um filme com um buraco negro no centro, desafio que em tempos Larraín soube enfrentar, se se lembram de Tony Manero.
E há outra coisa: Jackie é o filme do – conveniente – alheamento de Larraín face à História do Chile, algo que já foi feroz, visceral, no seu cinema e que aqui tem de estar suspenso. Não deixa de ser irónico que, sobre um país que em sucessivas administrações, e através da CIA, interferiu nos caminhos chilenos com consequências trágicas, Larraín abrace agora uma mitologia, de que Jackie foi uma das responsáveis, a da América de Kennedy como fugaz, irrepetível glória, como na lenda do Rei Artur cantada no musical favorito de JFK, Camelot.
Se Larrain filma para os Óscares – mas a ver vamos -, Terrence Malick filma para o Imax, e é para aí que vai a versão mais curta de Voyage of Time, documentário apresentado no concurso. Chega-nos de longe. Terá sido naquele período em que, diz-se, esteve retirado como um eremita, entre a estreia de Days of Heaven (1978) e o regresso com A Barreira Invisível (1998), que preparou o incansável presente que é o dele hoje. E foi em 1978 que concebeu Q, ambicioso projecto sobre a origem do Universo que esteve para fazer para a Paramount e nunca chegou a ser possível, tornando-se no mais mítico dos seus não concretizados, mas de que sobrou cosmogonia para A Árvore da Vida (2011), com céu, dinossauros e tudo, e de que resta ainda especulação e mito que dá para fazer Voyage of Time. A versão que vai ser distribuída comercialmente tem hora e meia, versão mais curta 40 minutos.
Dinossauros e medusas
Segundo os produtores Grant Hill e Sophokles Tasioulis, datam desses tempos a seguir a Days of Heaven as primeiras imagens que Malick captou, nas profundezas da costa australiana. Mas ambos citam a mulher do realizador que dizia que isto, a pergunta de quem somos e o que fazemos aqui e que lugar temos aqui, está com Malick desde que ela o conheceu. E conheceram-se na adolescência. Ao longo das décadas Malick foi investigando junto de cosmologistas, biólogos, no sentido de conferir que cada plano poético do filme fosse também cientificamente correcto. E nos últimos cinco anos as possibilidades tecnológicas fizeram do filme o que ele é hoje.
E assim temos novamente dinossauros, e medusas, glaciares, os céus, as vias lácteas de efeito especial, com a voz off de Cate Blanchett a invocar "Mother!" - na versão comercial, que será a mais poética; na versão Imax, mais “masculina” e mais pedagógica, segundo os produtores, junta-se a voz de Brad Pitt e maior densidade de informação científica.
Há outros animais em Voyage of Time que são efeito especial e outros que podem ser ou não mas cuja “natureza” é alterada por uma espécie de filosofia Imax generalizada, uma espectacularização asseptizada e sintética que se comunica a tudo, também à nudez das tribos ancestrais: corpos de que desapareceram, por exemplo, as marcas mais protuberantes do espectáculo humano.