Porque é que Portugal ama a Bienal de São Paulo?
Desde 1951 que os artistas portugueses não falham uma edição. O recorde de participações, 36, foi fixado durante o Estado Novo; este ano, serão cinco. Que em 2017 terão uma ponte aérea com o Porto, já que a parceria da bienal com Serralves é para continuar.
Os artistas portugueses vão à Bienal de São Paulo há 65 anos, sem falhar uma. Não há memória de outro grande evento internacional de artes plásticas em que a presença nacional seja tão continuada. Mesmo nos anos em que essa participação correu mal em termos numéricos, houve sempre pelo menos um artista nacional seleccionado para esta grande exposição de artes brasileira que existe desde 1951. Foi o que aconteceu nas duas últimas edições: em 2012, com Hugo Canoilas, e em 2014, com Bruno Pacheco.
Relativamente a esses dois anos, de facto, a Direcção-Geral das Artes – que sempre apoiou, pelo menos, parte das despesas dos artistas portugueses convidados pelos comissariados da bienal – não tem registo de quaisquer custos nos seus relatórios de actividades. Por isso, Paula Varanda, a nova directora-geral das Artes, está a tentar fazer “a reinscrição da Bienal de São Paulo no orçamento” do organismo e vê como “simbólico” este regresso ao apoio da presença portuguesa em São Paulo, contabilizado este ano em 16.500 euros.
No Parque do Ibirapuera, onde esta segunda-feira a Bienal de São Paulo é apresentada à imprensa, cinco portugueses vão estar entre os 81 artistas seleccionados para a 32.ª edição desta exposição de arte contemporânea que tem como título Incerteza Viva. Lourdes Castro, Carla Filipe, Gabriel Abrantes, Priscila Fernandes e Grada Kilomba foram as escolhas dos curadores da bienal, Jochen Volz e Lars Bang Larsen, depois de uma visita a Lisboa e ao Porto há cerca de um ano. Grande parte do investimento necessário a esta presença é da responsabilidade da própria bienal, tendo a Fundação Calouste Gulbenkian também participado.
Ao final da tarde, o primeiro-ministro António Costa e o ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes têm uma visita prevista à bienal, que é inaugurada oficialmente no dia seguinte e ficará até 11 de Dezembro no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, um edifício desenhado por Oscar Niemeyer
“A DGartes afastou-se da Bienal de São Paulo durante um determinado período. A última vez que tínhamos sido envolvidos foi em 2010, com a presença de sete artistas e um colectivo. Estamos a tentar recuperar no nosso orçamento um espaço para as participações internacionais em eventos de grande prestígio na área das artes plásticas e no modelo das bienais”, diz Paula Varanda.
Se a presença na Bienal de Veneza não foi posta em causa – um modelo diferente, uma vez que aí se trata de uma representação oficial, com a DGArtes a nomear um curador, que por sua vez escolhe o artista, e havendo lugar à produção de uma exposição –, já a participação na Bienal de São Paulo não contava com o suporte da DGartes desde 2010, ano em que ali fez um investimento que chegou aos 33 mil euros. Estiveram então em São Paulo Pedro Costa, Carlos Bunga, Filipa César, Maria Lusitano Santos, Pedro Barateiro, António Manuel, Artur Barrio e a Escola Maumaus.
“A bienal tem um bolo para os artistas convidados, mas o apoio nacional tem impacto na produção, na visibilidade das obras dos artistas e na sua circulação futura. Há uma negociação institucional”, explica a historiadora de arte Lígia Afonso, que está a fazer um doutoramento sobre a presença portuguesa na Bienal de São Paulo, de que foi assistente de curadoria na edição de 2010.
O artista Bruno Pacheco confirma a ausência de apoio da DGartes na última bienal: “Não tiveram qualquer interesse em saber se havia um artista português. Não fui contactado por ninguém. É lamentável.” Através dos contactos da Fundação da Bienal de São Paulo, porém, recebeu apoios da Gulbenkian e do Arts Council, uma vez que vive entre Londres e Lisboa e este último organismo considera que faz parte do tecido cultural inglês. “A mais-valia para um artista português seleccionado pelos curadores estrangeiros é perceber-se a sua relevância nos circuitos internacionais, que o seu trabalho já faz parte desse universo visual. Há esse reconhecimento exterior.”
Feitas as contas, Lígia Afonso olha para a participação actual como uma das mais relevantes dos últimos anos: “É uma participação bastante expressiva, transgeracional, e revela um esforço de investigação dos curadores.” Mesmo se a de 2010 tinha mais artistas, Afonso chama a atenção para o facto de dois deles, António Manuel e Artur Barrio, serem luso-brasileiros e deverem ser considerados artistas brasileiros. Os curadores desta edição, insiste, “demonstram na sua selecção uma atenção particular ao contexto de produção artística portuguesa, uma assunção de que essa produção tem relevo internacional”.
Mas se esta é uma representação importante no contexto dos últimos anos, já houve presenças bem mais numerosas: como a de 1953, com 36 artistas. “É interessante ver que a maior de todas foi durante o período do Estado Novo – não quer dizer que tenha sido a melhor, mas foi a maior. O que contradiz a ideia de que havia nos anos 50 e 60 um vazio programático em relação às artes plásticas portuguesas. Havia uma aposta clara na visibilidade dos artistas no estrangeiro.” A representação em causa foi organizada pelo Secretariado Nacional de Informação (SNI), o organismo público responsável, durante a ditadura de Salazar, pela propaganda política, mas também pelo turismo e pela acção cultural. Entre os nomes presentes nessa edição estavam nomes como Amadeo de Souza-Cardoso, Santa-Rita, Sarah Afonso, António Pedro, Fernando Lanhas e Vespeira.
A sexta vez de Lourdes
O primeiro período da presença portuguesa em São Paulo vai da inauguração da bienal, em 1951, a 1967, com o SNI a tratar do stand nacional. “O conceito no início está mais perto de uma representação nacional. A partir de 1969 a Fundação Gulbenkian passa também a estar envolvida”, explica Lígia Afonso.
Depois do 25 de Abril, em 1975, a Bienal de São Paulo é já só com a Gulbenkian: “A era Gulbenkian, com José Sommer Ribeiro como comissário, em que ele é também director do Centro de Arte Moderna, dura até meados dos anos 90." Depois, em 1996, à Gulbenkian junta-se o Instituto de Arte Contemporânea, o organismo público responsável pelas artes plásticas que estava a dar os primeiros passos na altura e que depois acabou por ser extinto (as suas competências passaram para a DGartes). “Até muito tarde tivemos uma instituição privada a definir uma representação de Estado. Num total de quase 30 anos e já com uma democracia plena.”
A partir de 1998, é sempre o IAC a fazer a selecção, ainda com a embaixada nacional como modelo. “Há uma representação nacional durante três edições – a última é sob a direcção de Paulo Cunha e Silva –, mas nessa altura a bienal muda de modelo e passa a ser ela a seleccionar os artistas que estão presentes, através da sua própria curadoria. Mas mudar de modelo não significa que as instituições nacionais deixem de apoiar e não as desresponsabiliza”, nota a historiadora de arte.
Essa última representação nacional, em 2004, com o comissariado de Alexandre Melo, esteve a cargo de Vera Mantero e Rui Chafes, com a instalação Comer o Coração, que teve um investimento de 280 mil euros. Segundo Paula Varanda, esse “é um caso excepcional”, uma vez que os apoios têm oscilado entre os 30 mil e os 70 mil euros por edição.
No grupo que vai agora a São Paulo, Lígia Afonso encontra várias coisas interessantes. “É a sexta vez que Lourdes de Castro participa na bienal. A primeira vez foi em 1959, quando o Amadeo teve uma sala especial com mais de quatro dezenas de obras. Com 29 anos, ao lado de René Bértholo, representava os jovens, e foi a primeira vez que Portugal se apresentou com artistas mais experimentais.” Em 2016, é a mais velha e um nome histórico da arte contemporânea portuguesa. “Carla Filipe, de uma geração intermédia, é uma artista firmada, com uma circulação internacional já relevante. Gabriel Abrantes e Priscila Fernandes são mais jovens mas também são apostas ganhas.”
A surpresa é Grada Kilomba, que se juntou à lista inicial em Maio, já depois da primeira apresentação dos seleccionados. Nascida em Lisboa, com raízes familiares em São Tomé, por via paterna, vive e trabalha em Berlim e é uma quase desconhecida no contexto nacional, com uma obra híbrida entre a academia e a prática artística dedicada à descolonização do discurso.
Parceira de Serralves
Continuando uma parceria que começou na anterior bienal, a Fundação de Serralves concretizará também esta semana “a celebração de um protocolo de colaboração com a Fundação Bienal de São Paulo para a apresentação das obras da bienal em Serralves em 2017”, segundo um comunicado de imprensa a ser divulgado esta segunda-feira.
“A Bienal de São Paulo é uma das mais importantes e a segunda mais velha do mundo, depois de Veneza”, explica ao PÚBLICO Suzanne Cotter, directora do Museu de Arte Contemporânea de Serralves. “Além disso, acontece no Brasil, uma parte do mundo que fala português, sendo uma plataforma importante para o pensamento e a produção artística contemporâneos.” A colaboração repete-se porque “houve um tremendo interesse pela bienal como evento e pelos trabalhos dos artistas”.
Por outro lado, continua a directora do museu, como a cada edição mudam os curadores, “faz sentido continuar esta conversa", complementando-a com "perspectivas diferentes”. Em 2017, Serralves espera poder explorar melhor as similitudes com São Paulo: têm ambos edifícios desenhados por dois grandes arquitectos nacionais (Álvaro Siza, no caso do museu do Porto) e um parque que pode ser explorado pelos artistas. Será o caso, por exemplo, de Carla Filipe, que apresenta nesta bienal uma horta de plantas alimentícias não convencionais, intitulada Migração, Exclusão e Resistência.
Desta vez, dado o significativo aumento da participação nacional em São Paulo, há também muito mais artistas portugueses para mostrar em Serralves – segundo o Ministério da Cultura português, "é o maior contingente estrangeiro" presente na bienal.
E confirma, segundo Lídia Afonso, uma tradição de décadas: “A Bienal de São Paulo é a exposição internacional de grande escala que, numa continuidade, revela o maior investimento português.”