Mel Gibson, um urso guloso na loja da violência
Politicamente incorrecto ou verdadeiramente mercenário? O cineasta toma a história real de um objector de consciência para a pôr ao serviço do espectáculo da guerra.
Comparam-no por aqui a Clint Eastwood, por serem indivíduos do contra, por serem resistentes ao politicamente correcto, mas Mel Gibson é um urso numa doçaria – a violência, é assim que ele a filma, o guloso –, enquanto Clint envolve-se em coisas mais amargas e emaciadas.
A comparação, para além de resultar da forma como os seus perfis se recortam da era Obama que está em fundo, tem também a ver com o facto de o regresso à realização do australiano, Hacksaw Ridge, contar um episódio verídico da Batalha de Okinawa onde pode ecoar o díptico de Eastwood sobre a Segunda Guerra Mundial, As Bandeiras dos Nossos Pais/A Batalha de Iwo Jima. Mas, precisamente, só esses dois filmes bastariam para fazer ver que temos de parar por aqui na associação Mel/Clint.
Dez anos depois de Apocalyto, Mel apresentou fora de concurso em Veneza um filme sobre Desmond Doss, um objector de consciência que foi o primeiro a receber a Medalha de Honra do Congresso americano pelos seus actos heróicos em Okinawa: sem pegar em armas, sem disparar um tiro, mas querendo participar, integrado na unidade médica, no esforço de guerra do seu país, Desmond, que morreu em 2006, salvou a vida de 75 homens. Como diz Gibson, os filmes fizeram-se para contar estas lendas. Heroísmo é a materia de que são feitos, segundo ele, com bons de um lado, maus do outro, uns e outros assim declarados como que pela ferocidade do instinto, sem tréguas para reequacionar. Coisas à medida de um fascínio pela violência como peça de entertainment que Braveheart – O Desafio do Guerreiro (1995) e A Paixão de Cristo (2004) já demonstravam à saciedade.
Respondendo, em conferência de imprensa, a uma pergunta sobre a forma como organizava as sequências de batalha tão “vicious” e tão “entertaining” nos seus filmes, Mel explicava que o caos tinha de ser organizado para dar a impressão de caos, só assim os espectadores se divertiam. E empregou a palavra “mercenário” – que talvez soasse como um “mercenário” ao assumir tanto savoir-faire com a guerra. Ora uma das coisas a questionar em Hacksaw Ridge é o facto de alguém que tão veementemente se opôs à violência – a passagem pelo exército americano, antes da guerra e das condecorações, foi prova dolorosa para Desmond Doss (no filme, Andrew Garfield), ao esbarrar com o preconceito e o medo que a sua decisão causava – estar na origem de um filme que, sem questionar nada como a personagem o fez em vida, se põe ao serviço do espectáculo da guerra. Com um pragmatismo feroz e sem ansiedades morais. Como se tudo pudesse ser pura BD.