Ulrich Seidl e François Ozon caçam humanos

Os brancos em África, os franceses na Alemanha: dois cineastas à procura, dois belos filmes.

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Safari, de Ulrich Seidl: um filme sobre matar DR
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Ulrich Seidl acompanhou turistas alemães e austríacos em África DR
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Os negros são presenças-fantasma em Safari DR
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Frantz, de François Ozon, parte de uma peça de Maurice Rostand que já deu um filme de Lubitsch DR
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Ozon encontrou na actriz alemã Paula Beer uma possibilidade actual de Romy Schneider fase Sissi DR
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Pierre Niney tem uma fragilidade física muito "de época" DR

As mãos tremem, a voz apaga-se, antes de a caçadora saber que o tiro foi no sítio certo, que o animal não fugiu, tomado por uma irrupção de adrenalina, e que caiu morto. O barulho seco, ao longe, da queda de um corpo faz a voz regressar à garganta da caçadora. Depois é seguir o rasto de sangue e encontrar o corpo, confirmar que o tiro foi “limpo”, receber parabéns, afagar o cadáver de “uma grande lutadora” – uma girafa, cujo pescoço na verdade ainda estrebuchou durante segundos, enquanto o resto da manada observava silenciosamente ao longe. Finalmente a pose, humanos direitos e animal cuidadosamente deitado, para a fotografia: Safari, de Ulrich Seidl (fora de concurso).

Recepção entusiástica na projecção oficial em Veneza, mas era uma assistência composta por fãs do cinema do austríaco, que aplaudia os nomes do realizador e dos seus colaboradores no genérico, e que resistiu ate ao fim às sequências em que a pele de zebras e girafas era tirada do corpo, ao partir dos ossos, à separação dos membros, ao esventramento…

Nada no filme vai melhorar ou piorar a relação, se ela for extremada, que cada um tem com os filmes de Ulrich Seidl. Mas, assim a quente, parece um dos seus mais silenciosos e graves, mesmo se foi filmado nas férias das “personagens”: um documentário sobre turistas alemães e austríacos em África; um filme sobre matar – não é o verbo que alguns preferem, “abater”, dizem, é melhor, introduz um sentimento de “libertação” (do animal) no gesto (do caçador); um filme sobre brancos e negros (o paternalismo de uns, o silêncio e o desaparecimento, presenças-fantasma, de outros); um filme sobre o estremecimento dos caçadores, a sensação de vitória, a arrogância e a ignorância, as razões que arranjam para justificar o que fazem (ou para dizerem: “não tenho de justificar aquilo que faço”); um filme que não é só sobre o que os homens fazem aos animais, é sobre o que os homens fazem a si próprios. Estamos sozinhos: é isso o que está em todo o cinema de Seidl e que está no valente plano final de Safari, uma quinta em África iluminada, decoração de conquista e de lanças, cão a guardar o vazio, a luz na imagem a apagar-se.

Ozon na Alemanha

O que fazemos a nós próprios, de que acrobacias emocionais somos capazes… é o estremecimento, a preto e branco e a cores, de Frantz, filme de François Ozon (concurso). Que começou a trabalhar na adaptação de uma peça de Maurice Rostand sobre um soldado francês que no fim da Primeira Guerra Mundial vai a uma cidade alemã depositar flores no túmulo de um soldado alemão, mas depois descobriu que Ernst Lubitsch já tinha feito com esse texto um filme (O Homem que Eu Matei, em 1932), pensou em desistir, mas continuou porque o seu filme era outro.

E é: é um filme sobre a rapariga alemã que no túmulo do seu noivo morto (o Frantz do titulo) encontra o soldado francês a chorar. Porque chora ele? Que relação tinham Frantz e Adrien? A Ozon pareceu justo responder, a um filme de um cineasta alemão sobre uma personagem francesa, com um filme de um cineasta francês sobre uma personagem alemã. Jogos e preciosismos à parte, é quando o filme segue o percurso de Anna (Paula Beer, actriz alemã que Ozon encontrou na busca de uma possibilidade actual de Romy Schneider fase Sissi) em direcção a Adrien Rivoire (Pierre Niney, actor de uma fragilidade física muito “de época”) que Frantz passa a ser de Ozon. O que procura Anna junto de Adrien? Até onde vai no seu trabalho de luto? Tal como no preto e branco de luto carregado deflagra às vezes a cor – não para marcar uma divisória temporal ou para separar planos narrativos, mas como sobrecarga emocional, tal como no Mistério de Oberwald (1980), de Antonioni –, também o melodrama rígido e austero que começa por ser Frantz, como “filme de estúdio”, se vai progressivamente acendendo com uma muito perversa, humana e inescapável ambiguidade.

Picando o western

Com tudo isto, não precisávamos de Brimstone, de Martin Koolhoven (concurso). E se tem o gosto do que ai vem, então estamos mal. Isto é, o gosto do western como paisagem para supostas homenagens, revisitações, o que se lhes quiser chamar, mas que na realidade, e pela amostra que é Brimstone, é terreno para exercícios sem vida. Virá aí The Bad Batch, de Ana Lily Amirpour, também em competição, descrito como “parawestern”. A estreia europeia do remake, por Antoine Fuqua, de Os Sete Magnificos (John Sturges, 1960), far-se-á fora de concurso. Martin Koolhoven chegou primeiro.

Se já se sabia que não era Quentin Tarantino a virar as páginas da Bíblia como se fosse manual de masoquismo – ou vice-versa – e com programa de emancipação feminina no centro, também não era preciso um exercício destes sem vida. Uma parte da culpa pela sensação de falsidade, às vezes mesmo pelo ridículo, vai para Guy Pearce, que nunca chega a fazer crer que a sua personagem existe, que não é uma caricatura o pastor vilão com bagagem cheia de perversões que interpreta. Por extensão, Guy comunica ao espectador essa sensação de não crença perante o olhar muito aberto de Dakota Fanning, a “filha” que ousa revoltar-se contra a perversão do “pai” (Dakota fala com os olhos porque não tem língua). Estão os dois num ritual que progride como uma máquina de parque temático a “picar” situações que já não têm vida. O western, aqui, é isso.

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