Existe um regulamento para o centro histórico de Lisboa? Se existe, não parece!
Parece que, hoje em dia, os cidadãos têm os sentidos embotados. Ou então desabituaram-se de observar o espaço que os rodeia.
Li com extrema atenção e agrado o artigo do João Seixas “Dez teses sobre o centro histórico de Lisboa” (PÚBLICO, 8/8/16). Aliás, habituei-me a apreciar a forma lúcida e profunda como este autor tem vindo a reflectir sobre a cidade contemporânea na leitura de um conjunto de crónicas publicadas num passado relativamente recente neste mesmo jornal.
Numa altura em que se assiste a uma explosão do turismo urbano na cidade de Lisboa (e também no Porto), há que avaliar o impacto que esta situação vai/está a acarretar para o próprio equilíbrio da cidade e de todas as suas dinâmicas interdependentes.
Tenho também acompanhado os movimentos de defesa do comércio tradicional, nomeadamente a necessidade de proteger e salvaguardar um conjunto alargado de lojas com inegável valor patrimonial e identitário.
Também a nível da reabilitação de edifícios muito se tem falado, assistindo-se presentemente a um incremento de obras num edificado que nos centros históricos se apresenta muito degradado. E é aqui que se situa um problema grave que não tem sido avaliado, debatido ou compreendido, e que, pelo contrário, tem sido simplesmente ignorado.
A arquitectura foi, desde sempre, um dos principais baluartes da identidade colectiva em todas as partes do mundo. Reflectindo as circunstâncias ecológicas, geológicas, sociais e artísticas do local a arquitectura contribui decisivamente para a construção do espírito do lugar – a essência emocional e espiritual do sítio.
O espírito do lugar é uma componente de genuinidade e autenticidade de grande intensidade, mas também de grande fragilidade, estilhaçando-se ao menor sopro de erros e falsificações. Ora, o que se passa é que esse elan corre perigo na cidade de Lisboa, na medida da descaracterização e desvirtuamento dos edifícios, principais elementos que estruturam o centro histórico da cidade.
Parece que, hoje em dia, os cidadãos têm os sentidos embotados. Ou então desabituaram-se de observar e de contemplar o espaço que os rodeia, aprisionados a um ritmo de vida frenético em que a única disponibilidade se canaliza para um ecrã. Se olhassem em volta, com olhos de ver, verificariam o estado desastroso em que as fachadas das casas antigas se encontram, as degradadas e as reabilitadas. Quer umas quer outras estão muito diferentes daquilo que eram originariamente.
Em primeiro lugar assiste-se a uma galopante substituição das janelas e portas de madeira por outras, totalmente diferentes, de alumínio. E a configuração das novas janelas, para além de diferente, varia em cada andar de cada edifício, o que cria uma cacafonia formal lastimável. A fachada de um edifício tem uma lógica formal e estética precisa e as configurações das caixilharias foram pensadas em função dessa lógica. Ao se alterar a parte transforma-se o todo. Além disso uma caixilharia em madeira (material nobre) é um objecto artesanal com valor artístico. Uma janela em alumínio (material rasca) é um objecto industrial de série destituído de qualquer valor intrínseco e que, poderia dizer-se, tem mais afinidade com um electrodoméstico (uniforme, metalizado, standard) do que com uma peça artesanal (orgânica, irregular, artística). Portanto, um edifício onde as janelas e as portas se transformam em elementos dissonantes, formal e materialmente, perde valor patrimonial.
Mas as fachadas também têm sido alvo de um total desvirtuamento, salvando-se aquelas que estão cobertas de azulejos. A utilização, quase sem excepção, de tintas industriais plásticas tem consequências estéticas lastimáveis (para além da sua incompatibilidade física e funcional com a alvenaria estrutural). As cores das ditas tintas ora apresentam uma expressão inerte e baça nas tonalidades cinzentas e castanhas, ora se tornam rutilantes e pirosas nas cores amarela, vermelho e azul. Lembro que as cores originárias eram obtidas por pigmentos naturais integrados na alvenaria de cal e areia (barramentos e escaiolas), sendo utilizadas principalmente as suaves mas luminosas tonalidades ocre, rosa, siena e verde-terra, para lá do branco e cinzento (em Sintra ainda se podem observar estas cores).
A regra fundamental na reabilitação de edifícios históricos é a utilização dos materiais apropriados e compatíveis. As reabilitações que estão a ocorrer em Lisboa são concretizadas, em mais de 90% dos casos, de forma totalmente incorrecta, desvirtuando os edifícios históricos e criando, em seu lugar, ridículos pastiches, falsificações intoleráveis no contexto de um centro histórico de um valor excepcional.
Não quero deixar ainda de referir uma alteração que já se manifesta há muitos anos, e que tem penalizado bastante a imagem geral do casario, principalmente quando observada de cima, o que em Lisboa é uma constante devido às colinas: a progressiva substituição da originária telha de canudo pela industrial e inestética telha lusa (em muitos centros históricos do país o regulamento não permite o uso desta telha). A visão geral da cidade perdeu unidade e espectacularidade devido a este facto. Aliás, relativamente a esta questão, podemos referir a cidade do Porto que mantém essa unidade e harmonia extraordinária devido à manutenção da mesma telha que é neste caso a telha marselhesa.
Resta pois perguntar se existe um regulamento para o centro histórico de Lisboa. Se existe, ou é totalmente omisso relativamente a regras básicas de intervenção em edifícios históricos, ou então assistimos à transgressão da lei, uma realidade bem comum na construção civil em Portugal.
A manutenção da autenticidade arquitectónica num centro histórico é um factor básico e estrutural para que a expressão da beleza, harmonia e identidade se afirme em todo o seu esplendor e, deste modo, constituir uma atracção irresistível para todos os que a habitam e visitam.
Artista plástico e autor do livro O Algarve Tal Como o Destruímos