A literacia também é mobilidade social
Só uma sociedade informada pode equilibrar os avanços tecnológicos com a proteção dos direitos fundamentais, fortalecendo a democracia e promovendo escolhas verdadeiramente livres e conscientes.
A literacia em geral e a digital em particular, ou a falta delas, acentuam desigualdades sociais, agravando fenómenos de exclusão que limitam a mobilidade social. Por exemplo, a ausência de competências digitais compromete o acesso a ferramentas essenciais de estudo, dificulta o acesso a melhores primeiros empregos, dificulta oportunidades de formação contínua e limita comparativamente a capacidade de adaptação a novas exigências profissionais. Estas novas formas de literacia têm um impacto direto e profundo na mobilidade social, tornando urgente uma consciencialização atempada e ações concretas para prevenir que estas desigualdades se perpetuem ou se ampliem. Esta ligação de literacia digital é um dos temas complexos a resolver na educação a curto prazo.
No último artigo, a iliteracia foi o tema-chave, com os (maus) resultados de Portugal na mais recente divulgação temática pela OCDE. O desassossego no tema tem de nos acompanhar e importa aprofundar o impacto no agravamento dos fossos sociais e o efeito de barreira de mobilidade social. Até porque é um problema que tende a acelerar-se num futuro próximo.
Quando se analisam os dados da literacia em profundidade, um dos dados comparados é o desempenho por gerações. É interessante verificar que, em todos os países pesquisados, a proficiência em literacia atinge o seu pico por volta dos 30 anos, refletindo um misto de maior preparação das gerações mais novas com o acréscimo de aprendizagem formal realizada no início da vida profissional. Note-se a importância dos processos de conhecimento e de formação ao longo da vida.
Tenho relacionado incessantemente a literacia com a nossa liberdade; sendo chave para a autonomia individual, para uma tomada de decisão mais informada e consciente, sermos menos alvo de manipulação e dependência, permite uma maior compreensão do mundo à nossa volta, melhor exercício de direitos e da própria participação em sociedade. Tem também um impacto coletivo, como, por exemplo, na qualidade da democracia.
Uma questão que tem levantado alguma discussão é a de saber se, num mundo com maior acesso a informação, que vai de uma simples procura num motor de pesquisa ao acesso a inteligência artificial, a literacia pode ser menos importante por haver “mais muletas”. É justamente o contrário: num contexto de crescente inovação tecnológica e inteligência artificial, o conhecimento torna-se ainda mais crítico. A tecnologia, com as suas inúmeras ferramentas e algoritmos, molda cada vez mais a forma como interagimos com a informação, muitas vezes sem que estejamos plenamente conscientes dos processos subjacentes. Sem diversos tipos de literacia, há uma maior vulnerabilidade à desinformação, manipulação algorítmica e perda de privacidade, comprometendo a real capacidade de fazer escolhas fundamentadas e livres.
Além disso, a inteligência artificial desempenha um papel crescente em decisões que afetam o quotidiano, de recomendações de conteúdos à análise de dados para políticas públicas. Para compreender e avaliar criticamente estas dinâmicas, é fundamental que os cidadãos desenvolvam competências para questionar, interpretar e interagir com estas tecnologias. A literacia, nesse sentido, torna-se um pilar indispensável para garantir que a tecnologia sirva os interesses democráticos e não os comprometa. Só uma sociedade informada pode equilibrar os avanços tecnológicos com a proteção dos direitos fundamentais, fortalecendo a democracia e promovendo escolhas verdadeiramente livres e conscientes.
Os desafios ao nível da literacia são gigantes, mas, para além do atraso comparativo que Portugal tem face a outros países desenvolvidos, é preciso perceber que o mundo é dinâmico, e com eles a adaptação dos desafios. Isto aplica-se à literacia e novas formas de (i)literacia, sendo que não as podemos dissociar de políticas públicas, da intransigência de preocupação enquanto cidadãos, empresas, organizações ou governos. O desassossego neste tema tem de ser constante e ativo.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico