Dantesco
A situação da floresta e do território não se alterou um milímetro. Onze anos depois estamos no exacto lugar onde estávamos, apenas com alguns bombeiros mais profissionais e uma protecção civil, segundo consta, mais competente.
É evidente que isto não é só um problema português, mas é um problema que em Portugal atinge dimensões dantescas, para utilizar o adjectivo que mais temos escutado nos últimos dias: vivemos num país com uma absoluta incapacidade para agir sem ser em face da tragédia. Seja no problema dos incêndios, seja na questão das finanças públicas ou da implementação de reformas no Estado, a nossa capacidade de planeamento de médio e longo prazo é praticamente nula, e só quando somos colocados perante o abismo é que arranjamos forças interiores para mudar de rumo. Encostados à parede, somos excelentes a reagir: improvisamos, inventamos, desenrascamos. Mas antes de lá chegarmos, mesmo com todos as luzes de perigo a piscar, não queremos nem saber.
E claro está: assim que a tempestade amaina e nos sentimos um pouco folgados, voltamos de imediato ao nosso estado natural, hipnotizados pelo curto prazo, que isto da vida são dois dias e nenhum de nós sabe o amanhã. Não admira que um filme como O Clube dos Poetas Mortos continue a ser o favorito de tanta gente. José Sócrates, por exemplo, adorava-o. Carpe diem! Seize the day! Aproveita o dia! Como se precisássemos de Robin Williams armado em professor de Literatura para nos dizer isso. Nos Estados Unidos, o filme será um estímulo para mudar de vida e quebrar o statu quo. Em Portugal é apenas uma confirmação da maneira como vivemos há séculos – é esse o nosso statu quo: um dia de cada vez. Com uma diferença significativa: os nossos olhos não estão poeticamente postos no céu, mas brutamente enfiados na biqueira dos sapatos.
Porque é que somos assim? É consequência de uma pobreza antiga, com certeza, e de uma população com profundíssimos défices de educação, atrasos ancestrais que estão mais enfiados nos nossos genes do que gostaríamos. Temos expectativas de ser um país europeu desenvolvido e rico, como os alemães, mas não temos qualquer tradição de planeamento, e a maior parte de nós ainda vem de famílias que contavam tostões e faziam filas nas bombas quando a gasolina subia dois escudos. Não havia o que planear. Para mais, somos dados ao fatalismo, e a nossa indignação desaparece à velocidade de um fósforo – as coisas são rapidamente assimiladas como inevitáveis. Foi o destino.
Às vezes é mesmo o destino, não digo que não, e as coisas são inevitáveis: ver aquelas labaredas descer a encosta do Funchal num dia com temperaturas de 38 graus e ventos fortíssimos apenas nos reduz à nossa minúscula dimensão perante a força imparável da natureza. Não há bombeiros, autotanques ou aviões que parem chamas daquelas num dia daqueles. Mas experimentem recuar 10 ou 11 anos e leiam os jornais da altura, na última grande vaga de fogos em Portugal. Eles estavam cheios de textos de especialistas acerca de qual era o problema da floresta portuguesa e sobre aquilo que havia a fazer. Esses textos poderiam ser todos impressos outra vez. A situação da floresta e do território não se alterou um milímetro. Onze anos depois estamos no exacto lugar onde estávamos, apenas com alguns bombeiros mais profissionais e uma protecção civil, segundo consta, mais competente.
O presidente da República não é o típico português, mas ouvi-lo dizer que é preciso “pensar a sério como é que se trata da questão do ordenamento do território” daria para rir, se não fosse tão triste. A sério? Será desta? Vai ser agora? Ou daqui a 11 anos cá estarei eu, mais velho, mais gordo e mais careca, a escrever um texto igualzinho a este?