As pessoas gostam de se orgulhar das suas escolhas

Há aqui soberanismo xenófobo? Em certos casos sim. E em muitos outros há um desejo de democracia.

Ainda as urnas não arrefeceram e a discórdia e o azedume já se instalaram no RU e fora do RU, entre a esquerda e a direita, na esquerda e na direita, entre os tories e os labourites, entre os tories e entre os labourites, entre Bruxelas e Londres, em Cardiff e em Edimburgo, em Dublin e em Belfast, entre os leaves e os remains, entre os leaves que queriam sair e os que afinal não queriam, entre os remains que queriam ficar mas que sempre disseram que era melhor sair, entre os jovens e os velhos, os educados e os mal-educados, os citadinos e os camponeses, os londrinos e os outros todos, entre uns e outros e entre todos e os outros.

Era de esperar que, se se verificasse uma vitória do Brexit no referendo britânico, contra a expectativa da maioria dos peritos, o efeito fosse o de um terramoto de grau 8. Foi o que aconteceu. Só que, aparentemente, ninguém esperava que o Brexit ganhasse mesmo, a começar por muitos dos seus próprios apoiantes. Alguém achou que Boris Johnson estava feliz e vitorioso? Alguém o achou confiante e entusiasta?

A discórdia é de tal grau que há mesmo quem não queira guardar as urnas e tente marcar um segundo referendo, para ver se desta vez o povo britânico vota bem. E nos jornais e nas televisões e nos sites desse grande país democrático, pai e mãe e tio mais velho da democracia, aparecem pessoas que votaram Brexit a dizer que votaram pela saída mas que não lhes explicaram bem, que era só como voto de protesto e agora se faz favor tirem o meu voto das contas.

E britânicos seriíssimos, formados em boas escolas, nascidos do pai e da mãe da democracia, dizem que o voto deles devia contar mais e que é uma injustiça que não conte porque são mais novos e têm mais educação e vivem em cidades e há uma quantidade de velhos com mais de 50 anos e com menos estudos e que até vivem no campo que votaram pelo Brexit e o voto deles conta a mesma coisa e já se viu tamanha injustiça?

Houve quem comparasse este referendo a uma radiografia da nação britânica, reveladora das múltiplas fracturas escondidas. É.

Há inúmeras lições a retirar deste referendo e existem para todos os gostos. Uma coisa a notar é o facto de uma maioria de cidadãos britânicos ter decidido votar num sentido contrário ao apontado pelas elites do país e pelas elites do resto do mundo. Chama-se democracia e é algo que pode ser extremamente irritante.

Outra das lições a retirar é que uma das maiores campanhas do medo jamais orquestradas, que não só defendia que se deixasse tudo como está porque pelo menos sabemos com o que contamos (um argumento que não é isento de racionalidade) mas que prometia todos os cataclismos possíveis e impossíveis em caso de Brexit (os jovens não poderiam ir estudar para o estrangeiro, as empresas não poderiam exportar para a UE)… não funcionou.

Há quem pense que isso se deve ao facto de a campanha do Brexit ter, por seu lado, feito toda a espécie de promessas irrealistas ou falsas (injectar “os 350 milhões de libras que o RU paga por semana a Bruxelas” no Serviço Nacional de Saúde!). Mas, partindo do princípio de que as pessoas não são todas parvas e que sabem que as promessas não são todas sérias, parece mais plausível considerar a possibilidade de muitos britânicos não terem apreciado o tom de chantagem a que foram submetidos pelas suas elites, pelos patrões, pelos eurocratas, pelos banqueiros e até por Obama. É curioso ler depoimentos de votantes do Brexit e constatar que são raros os que esperam maravilhas. Pelo contrário, sabem que os esperam anos difíceis, mas esperam ter o benefício de controlar os seus destinos. Há aqui soberanismo xenófobo? Em certos casos sim. E em muitos outros há um desejo de democracia que a UE não consegue satisfazer nem consegue perceber.

A quase totalidade dos argumentos para ficar eram de ordem económica, como muitos dos argumentos para sair. Mas o que brilhava pela sua ausência eram os argumentos de princípio para ficar. E sim, é verdade que se vota com a carteira. Mas as pessoas também gostam de se orgulhar daquilo em que votam.

E acontece que a União Europeia, com a sua Comissão Europeia dirigida por Jean-Claude Juncker, que quando primeiro-ministro do Luxemburgo presidiu à maior operação de evasão fiscal europeia e que como Presidente da Comissão presidiu à campanha de humilhação da Grécia, não é uma entidade respeitável. Não há campanha que possa branquear esse facto.

Penso que, se Juncker tivesse sido despedido pelo Parlamento Europeu em 2014, na sequência do LuxLeaks, isso teria mostrado que havia algum sentido de decência em Bruxelas e poderia ter dado um argumento ao Remain e alguma alma à UE. Mas até o Parlamento Europeu, que gosta de se considerar a “consciência democrática” da UE, preferiu chumbar o voto de censura contra Juncker apesar dos seus esquemas “controversos” de evasão fiscal, como que para provar que dali não viria a salvação.

Juncker já prometeu que o divórcio UE-RU não seria amigável. Há sede de vingança na UE. Juncker parece empenhado em mostrar que a UE é dirigida por pessoas pouco recomendáveis. Será assim tão estranho que tantos tenham escolhido sair?

jvmalheiros@gmail.com

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