Uma deriva maravilhosa, lenta e atenta
Com uma escrita de profundo equilíbrio entre a precisão da linguagem e o voo da efabulação, este romance breve de Alexandre Andrade traça um mapa minucioso mas intensamente subjectivo da cidade de Paris.
O elemento domiciliar prolonga a tónica já presente em Quarto Alugados (Exclamação, 2015). E há mesmo certos elementos que transitam daquele livro de contos para este romance breve, ou “noveleta parisiense”, como lhe chama a ironia despretensiosa de Alexandre Andrade. Os vestígios de anteriores locatários, como camadas de pele abandonadas, são sinais que remetem para vidas anteriores e reflectem, de modo difuso, viagens debaixo de outros céus. É o sortilégio de uma indeterminação quase espectral. Como se os ocupantes que antecederam estas personagens continuassem a viver, em sombra, num resto quase vivo. O espaço, enquanto dimensão e tópico, continua a ser um dos veios por onde corre o valor desta escrita, como quando a personagem de Guy estabelece a hierarquia: “mais facilmente se subestima um volume do que uma superfície” (p.13). Os “rectângulos de luz” (p.21) de O Leão comunicam a sua luminosidade insinuante e exacta a um fragmento de Quartos que rasga um “rectângulo de mundo delimitado pela janela”. Noutros casos, a aproximação ao livro de contos procede por contraste – por vezes, de forma rigorosamente simétrica. No conto In absentia, a anterior inquilina deixara uma luva da mão esquerda; em O Leão de Belfort, é como se reaparecesse o par correspondente – “A primeira vez que Cristina perdeu um objecto na casa nova. Foi uma luva, a da mão direita.” (p.24) (Curiosamente, a locução latina in absentia chega a ser utilizada no decurso de O Leão de Belfort.) A trajectória de Cristina, protagonista de O Leão de Belfort, faz-se em sentido inverso ao conto Rua da Velha Lanterna Vermelha, de Quartos Alugados. Neste, o narrador descrevia meticulosamente a cidade de Lisboa nas suas manifestações topográficas e, no fim, rumava a Paris; em O Leão de Belfort, Cristina, que se outorga o direito de narrar, por via do seu quase diário (embutido na narração), percorre uma cidade de Paris descrita em grande pormenor nas suas “tramas” – palavra insistentemente repetida –, terminando por partir para Lisboa. A inserção desse pseudo-diário serve o propósito de lançar a dúvida na grelha dos acontecimentos do enredo, mas também na série dos géneros. Como um instrumento que alterasse a velocidade de tudo: ora abrandando o ritmo da narração, ora acelerando os factos, agitando organismos e acontecimentos. O capítulo 22, por exemplo, é predominantemente escrito no presente do indicativo, à maneira de um guião. Existem mesmo notações como “exeunt”, como se, algures no caminho, o roteiro se tivesse fundido com as regras e a gramática da tragédia de molde clássico. A tipologia literária é aqui um modo de gerar a tensão, de questionar certezas, muito mais do que um factor eliminatório.
O Leão de Belfort do título representa o previsível, em função do qual a existência da protagonista tem decorrer. Na sua monumentalidade, simboliza o conforto em que tudo deve situar-se, mas que a personagem quer contrariar. Pormenor da topografia de Paris, descrito com minúcia nas suas origens históricas e informações contextuais, ele torna-se um índice do peso que Cristina pretende abandonar. Talvez seja o excesso, o que ela procura, como aquele que é descrito, sob a forma de luz, no rosto de um dos seus interlocutores. Excesso que, aliás, se estende, poucos parágrafos depois, à própria cidade de Paris. A cidade surge como um corpo-mapa, em que as artérias-ruas são vasos por onde corre o sangue que anima a infinidade de histórias que a grande urbe acolhe. Expressões como “trama ortogonal das artérias” (p.30) reforçam o “espírito científico” destas páginas, cuja fantasia se alicerça sempre num conhecimento sólido das coisas e da sua mecânica.
Não são excedentários, os dados que pormenorizam determinadas incidências das personagens. As gotas de chuva e os vestígios de lama levados por Cristina para dentro de um edifício público transportam consigo as noções de risco e obstáculo – além de estabelecerem um nexo de contraste entre a “limpeza” das normas e a “impureza” da rebeldia. Este quadro, de aparente insignificância, instala, enfim, um tecido de sentidos que se tornam vitais para o funcionamento do romance. Cristina está a meio, também ela é um signo de separação, uma divisória em si mesma. Entre a França, onde reside, e a Alemanha, de onde é originária; entre o que é, e se revela pouco ou nada, e o tumulto que pretende para si. Quando chega a altura de escolher a nacionalidade numas eleições europeias, decidir-se-á pelos deputados franceses. Mas o mais importante não é essa opção, que a personagem parece tomar quase inconscientemente; é a tensão activada por esse simples facto, tão marcado pelo cinzentismo da burocracia. Logo na transição desse capítulo para o seguinte, em cujas palavras iniciais se lê: “O movimento de entrar no quarto e o movimento de se deitar na cama confudiram-se como se fossem um só.” (p.34) Uma espécie de buraco negro miniatural que revolve o tempo e abala a trajectória cada vez mais excêntrica e errática da personagem. Como se Cristina se quisesse livrar dos desígnios que a narrativa lhe vai criando. Quando deixa de procurar, são os enredos e as peripécias que a encontram. Como na história que “envolvia uma excursão nocturna em patins pelas ruas de Paris, um grupo de turistas croatas e uma trovoada súbita e muito violenta” (p.135). Quase uma overdose de acontecimentos, para quem, desesperada por “acontecer”, já imaginava uma vida dupla para o namorado, por causa de certo livro de autor anti-semita encontrado entre os seus papéis. Será, porém, ela a viver essa duplicidade: uma relação secreta e a decisão de abandonar Paris.
O modo dubitativo de existir destas personagens aproxima-as de um esquema de tentativa e erro, que as torna entidades muito menos presumidas do que poderiam ser. Existem nesse limbo criativo propício ao movimento e à oscilação nervosa. Nem demasiado reais, nem sobrecarregadas por uma ficcionalização que as plastificasse. A arte consiste, aqui, em dotar estes seres de um fôlego suficiente para suster a respiração e sofrer vicissitudes de vári ordem, como na vida. Em particular, Cristina e Guy, mas até as personagens envolventes, por vezes acertadamente secundárias ou mesmo figurantes. Só Anaïs parece escapar a esse esquema. Espécie de coro da tragédia – tão fugidia e misteriosa, que Cristina precisa, a dado momento, de a desenhar para tentar fixá-la, embora apenas consiga recordá-la em trânsito ou no instante de dobrar uma esquina –, Anaïs é como a portadora das regras do jogo, que ocasionalmente desvenda. Oracular, revela sem deitar a tudo a peder. Em termos da composição do romance, funciona como uma voz metaficcional, a debater as questões que, em situação normal, ficariam subentendidas pela narrativa.
É sobretudo a disponibilidade que define estas personagens. Esse dom tem algo que ver com a disponibilidade do próprio autor, que, até onde podemos ver, está menos interessado em impor a sua versão dos factos do que em deixar fluir a verdade contingencial e debatível das vidas por si propostas ao leitor. A verdade das suas personagens não é um dogma, mas um arranque de debate. A realidade por elas partilhada é pessoal, altivamente subjectiva, repleta de cumplicidades mais ou menos opacas – “amarrotada de origem como todas as notas de 50 francos” (p.72), informação presente em mais de um momento do romance. A “vida real” surge de um filme de Griffiths. É ao assistir a True Heart Susie que Cristina é confrontada com a premência da realidade. Por isso foge e, numa sequência de segura destreza narrativa, corre “contra a corrente do rio Sena” (p.93). Não sabemos se o faz para escapar da realidade ou para melhor a integrar.
Nada disto quer dizer que o processo de composição das personagens esteja em risco de colapso. Ele é, pelo contrário, um pocesso altamente consumado, de tal forma que a riqueza das personagens permite esse suplemento de vivacidade que lhes autoriza a falha, a fissura, que as torna mais humanas. Tanto assim é, que, no momento em que o livro começa a questionar-se nas suas componentes – a personagem de Cristina como que se se rebela e pretende tomar para si o leme da acção –, a sua maquinaria adquire novas feições, afaz-se ao novo terreno que se apresenta.
Não são muitos os autores que consigam ficar tão longe de extremismos frequentes e prejudiciais – excessiva frieza de expressão e hemorragia por estancar. No caso de Alexandre Andrade, a questão parece ter de se pôr noutros moldes. Não importa o acúmulo ou avareza das palavras, contenção ou expansividade da frase. Porque a maturidade desta escrita parece encaminhar a reflexão para outros quadrantes. Alguma coisa passará por uma relação com o legado artístico e literário que, sem ser servil, não se mostra displicente. Uma atitude que facilmente se relaciona com o cosmopolitismo de referentes e adesões culturais de AA, polarizado sobretudo na francofonia, e que descreve um arco nitidamente amplo. O que, paradoxalmente, confere às realizações do autor uma leveza e uma elegância que fazem das sua referências menos amarras do que instrumentos de voo. Não é bem o mot juste. Ou não o é de forma nenhuma. Antes uma utilização, eivada de extrema correcção, dos códigos da escrita. Um ajuste que não implica uma normalização opressiva. Cada parte, pelo contrário, fulge sempre sem apoucar o conjunto. Daí que não se possa falar de virtuosismo, nem de acaso, mas de uma corrida de fundo em que o atleta se funde admiravelmente com o percurso.