Entra na minha fantasia, agora
Federico Léon compôs um tratado cénico (mas curto, não se preocupe, leitor) sobre a passagem do tempo de criação do espectáculo.
Ideias fixas é coisa que toda a gente tem. A dos actores deste espectáculo é fazer uma peça, em particular esta própria peça, que se apresenta perante os nossos corpos, aqui e agora. Isto, imagino eu, é o que pensa quem se senta para ver Las Ideas, a produção do argentino Federico Léon estreada em Bruxelas em 2015.
O que se vê em cena? Dois actores a discutirem ideias para um espectáculo, à volta de uma mesa de pingue-pongue, transformada em mesa de trabalho, que serve ainda para, às vezes, projectar as gravações em vídeo dos ensaios anteriores, gravações onde se podem ver... dois actores a discutirem ideias para um espectáculo. Federico León e o seu comparsa, Julián Tello, gravam tudo o que fazem durante os seus ensaios para este espectáculo, inclusive o momento em que assistem à filmagem dos outros ensaios, de tal modo que, às tantas, vemos os actores a verem o ensaio de ontem, em que os actores viam o ensaio de anteontem.
Os dois companheiros não estão só a discutir ideias, mas também, e sobretudo, a tentar concretizar ideias, experimentando coisas, acções e efeitos. Essa experimentação é que constitui o espectáculo. E o espectáculo é assim mesmo — uma peça em forma de ensaio aberto, fingindo ser espontânea e improvisada, quando afinal, como se vê, entre outras coisas, pela legendagem, é desenhada ao pormenor. E o desenho da peça é primoroso.
Os espectáculos passam ideias sobre o tempo e o espaço que normalmente passam inadvertidamente pela consciência dos espectadores. Federico Léon compôs um tratado cénico (mas curto, não se preocupe, leitor) sobre a passagem do tempo de criação do espectáculo, condensada num ensaio fictício a que assistimos com deleite, que é afinal sobre a memória das coisas que fazemos, o tempo de permanência das ideias na nossa mente, e a duração real e imaginária dos espectáculos de teatro. O deleite vem do encanto provocado pelo encadeamento das cenas, pelo fingimento da espontaneidade e pelos efeitos visuais e sonoros, tudo temperado com humor. Mas a experiência reverbera porque o espectáculo usa recursos técnicos antes relativamente demorados e raros, que se tornaram rápidos e quotidianos: a gravação e projecção vídeo, o processamento de texto, os instrumentos musicais electrónicos.
A manipulação destas máquinas num todo coeso dá forma à experiência comum de utilização delas. O modo como essas ferramentas digitais de uso diário trabalham para formar a nossa fantasia do tempo, da memória e da história está exposto neste espectáculo de modo subtil e indirecto, no modo como a peça cria um lugar e um tempo alternativos à realidade, sem deixar nunca de nos chamar a atenção para o lugar onde de facto estamos. Mas de factos está o inferno cheio. A fantasia perdura.