A vingança de uma mulher

Luís Filipe Rocha assina uma inteligentíssima variação sobre as mecânicas do policial, com uma Joana Bárcia de estarrecer no papel principal.

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Cinzento e Negro tem gente de carne e osso, e faz passar o tumulto que lhe vai por dentro

Talvez não haja, no actual panorama do cinema feito em Portugal, realizador mais injustamente ignorado do que Luís Filipe Rocha. Embora a “batalha” por um “cinema do meio” que não caia na opacidade autoral nem na boçalidade popularucha não seja um exclusivo seu, o autor de Cerromaior (1981) e Adeus, Pai (1996) nunca gozou da mesma popularidade de companheiros de geração como António-Pedro Vasconcelos ou o malogrado José Fonseca e Costa. É mais uma daquelas injustiças em que Portugal é pródigo, e não nos parece que a sua correcção esteja nas cartas com Cinzento e Negro, apenas a décima longa-metragem do autor em 40 anos de carreira; amarga, telúrica, negra, esta variação austera sobre as mecânicas do policial negro não está minimamente interessada em ceder um milímetro que seja às exigências do momento. Confirma, de caminho, o amor de Rocha pelos actores: tal como Leonor Seixas e João Ricardo nunca estiveram tão bem como em A Passagem da Noite (2003), ou como Maria João Luís encontrou um papel à altura do seu talento no menos conseguido Camarate (2001), também aqui Joana Bárcia arranca uma interpretação de estarrecer como Maria das Dores, simultaneamente heroína e vilã do filme, mulher orgulhosa e amarga, humilhada pela vida, cuja sede de vingança põe a trama em movimento.

Regressando aos Açores que já eram cenário de Adeus, Pai, Cinzento e Negro acompanha uma aparente investigação policial, com Maria das Dores e um polícia (Filipe Duarte) a viajarem para o Faial em busca de um homem. Numa construção narrativa extremamente inteligente, o motivo dessa busca, e as razões dos envolvidos, só serão revelados gradualmente, mas é provável que sejam meros macguffins; todas as personagens parecem estar numa “fuga para a frente” que é também uma procura quase desesperada de um sentido para a sua existência, de algo que lhes permita encontrar a paz. Cinzento e Negro não pretende sequer defender que essa paz seja possível; limita-se a acompanhar as personagens numa jornada pessoal e intransmissível, que subverte com tonalidades negras as paisagens de “cartão postal” dos Açores para melhor sublinhar a insularidade e a distância.

Cinzento e Negro não está isento de fragilidades. A banda-sonora de Mário Laginha, surpreendentemente, não funciona no contexto da história, já vimos Filipe Duarte muito menos rígido, os diálogos secos são por vezes demasiado programáticos e o filme transpira um certo odor de “fora de tempo” – mas, no cômputo geral, são pormenores de somenos. Ao contrário de muito filme que por cá se faz, Cinzento e Negro tem gente lá dentro, pessoas de carne e osso, e faz passar o tumulto que lhes vai por dentro. Que este homem só rode de cinco em cinco anos quando gente muito menos talentosa produza regularmente é, literalmente, escandaloso.

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