Sozinhos dentro da alegoria

Depois da aspereza de Canino, Yorgos Lanthimos regressa com um filme sentimentalista que entrega tudo de bandeja ao espectador.

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O grego Yorgos Lanthimos, conhecido em Portugal por Canino, de 2009, aventura-se na língua inglesa e no filme de elenco internacional, onde há ingleses (Rachel Weisz), irlandeses (Colin Farrell), americanos (John C. Reilly) e franceses (Léa Seydoux). Mas o bestiário, que A Lagosta expande muito para além do molusco que lhe dá o título, é capaz de ser a única coisa que na mente do espectador pode servir para ligar os dois filmes e lembrar que se trata do mesmo realizador. Onde Canino era áspero e refractário à legibilidade, A Lagosta vive num sentimentalismo macambúzio e num modo alegórico que está sempre a pedir a sua “descodificação”, o que não seria demasiado mau se o “programa” do filme não residisse inteiramente aí, na entrega ao espectador de “sinais” para que ele interprete o que está a ver.

Tudo começa por se passar numa espécie de estância para gente solitária, submetida voluntariamente a um rigoroso programa de “socialização”; se, passado determinado período, não tiverem encontrado um parceiro ou uma parceira, são transformados em animais e devolvidos à vida exterior (o protagonista, um Colin Farrell de caracterização muito parecida com a do solitário Joaquin Phoenix do Her de Spike Jonze, escolheu previamente ser uma lagosta). A descrição das muitas regras “proto-totalitárias” da estância, os contactos a aproximações entre as personagens (todas bastante monodimensionais, vide a “mulher sem coração” que é apenas isso, uma “mulher sem coração”), a atmosfera de bizarria diametralmente oposta à de Canino (porque mais maleável, mais “molusca”, passe o jogo de palavras), ocupam a primeira parte do filme – que tanto traz a memória o recente A Juventude de Sorrentino, como o Grande Hotel Budapeste de Wes Anderson, como até as composições simétricas do Shining de Kubrick, sem que Lanthimos procure o mesmo gelo e o mesmo desamparo para o lugar do espectador. Depois, na segunda parte, a dona da voz off (Rachel Weisz) revela-se como personagem, e aparece Léa Seydoux como líder de um grupo que vive nos bosques das imediações, e que não aceita o “imperativo” da socialização nem, muito menos, da conjugalidade. Mas a alegoria, razoavelmente óbvia (a solidão involuntária contra a solidão voluntária, o nascimento do amor num contexto acossado por uma razão ou por outra), esgota-se em si mesma, e não são algumas cenas (quase uns apartes) bem conseguidas, como a do solitários a dançarem a som duma música que só eles ouvem nos seus headphones, nem a introdução dum romantismo mais ou menos fatalista (que aqui aparece via Nick Cave, cuja Where the wild roses grow é trauteada a dada altura, e já antes se tinha ouvido Something’s gotten hold of my heart, que não é dele mas que ele gravou) que vem introduzir algum grão de areia na engrenagem cuidadosamente congeminada por Lanthimos, mas sempre esparsa, sempre de horizonte curto, sempre terrivelmente frustrante na redução das suas personagens a qualquer coisa entre o boneco e a criança grande (mas mesmo o “infantilismo”, a “regressão”, não tem em A Lagosta a rudeza que tinha em Canino). Durante a projecção lembramo-nos, nem sabemos bem porquê, de um grande cineasta da solidão, Nick Ray, e de uma frase que ele incluiu na despedida (We Can’t Go Home): “Ninguém consegue nada sozinho, nem a loucura.” Sozinho ou não, A Lagosta também não consegue nada – nem a loucura.

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