A caminho de Cannes, Pedro Peralta e Cristèle Alves Meira dizem de onde vieram
Dois portugueses na Semana da Crítica de Cannes, duas curtas-metragens. Para onde eles vão como cineastas? Não é justo apostar. O que interessa é que Ascensão e Campo de Víboras já dizem de onde eles vieram.
Para onde eles irão, como cineastas, a seguir às suas curtas-metragens não é justo apostar. O máximo que se pode dizer, aqui e agora, é que Cristèle Alves Meira, 33 anos, e Pedro Peralta, na casa dos vinte, vão para a Semana da Crítica do Festival de Cannes que se inaugura esta quarta-feira com o novo filme do Woody Allen, Café Society, que vai ser apresentado fora da competição. O que interessa é onde Pedro e Cristèle estão. E Ascensão e Campo de Víboras, respectivamente, são filmes que dizem de onde eles vieram.
Cristèle nasceu em França, nunca estudou em Portugal, mas regressa à aldeia da mãe, Vimioso, Trás-os-Montes, todos os verões. O que a faz ter “o perfil típico de emigrante”. Perguntámos-lhe se era por isso que em Campo de Víboras (2016), tal como numa curta anterior, Sol Branco (2015), se sente um desejo de fuga – há um encontro ou identificação com rituais e laços que se formam nas comunidades mais pequenas, mas as suas heroínas (em Campo de Víboras a personagem principal é interpretada por Ana Padrão) só podem ser fiéis aos seus fantasmas mais profundos. O que as leva a entrar em zonas secretas de transgressão.
Pedro cresceu em Odivelas, vive “entre a cidade [Lisboa] e o subúrbio”. Mesmo se considera “muito perigosa” qualquer dicotomia campo/cidade, é nas artes, no cinema em particular (“o cinema é o único espaço de metafísica”, define quem se assume “racionalista”, com um “pensamento que é produto de uma matriz científica”), que se permite continuar a relacionar-se com a natureza “como no ideal do romantismo alemão”.
Pedro passou meses a “namorar” aos fins-de-semana a população de uma comunidade fechada, Glória do Ribatejo: na Casa do Povo, no café, na missa... Foi uma procura “intransigente” de corpos e rostos para Ascensão, uma curta filmada em três planos sequência. Há um corpo de rapaz que é retirado do fundo de um poço pelos homens que puxam enquanto as mulheres se suspendem em austera angústia; há o recobro, velado como uma Pietà, desse rosto de traços oblíquos (Pedro encontrou, finalmente, o seu “ícone russo” como queria); há o reconhecimento entre uma mãe e o seu filho, e depois ele parte, enquanto o dia nasce de novo e a vida continua. Para onde vai?
A esta sua própria pergunta Pedro diz não saber responder. Nem se o filme usa a iconografia crística para depois fazer a sua desconstrução. Pedro gosta de filmes que não deixam de ser um continuum de reflexão, como nos de Apichatpong Weerasethakul ou Carlos Reygadas, que nos deixam ficar sempre um “o que foi aquilo?”. A nossa proposta de leitura não é resposta alguma, nem resolução de qualquer contradição, mas parte de uma sensação física: a de que o final é o corte com a claustrofobia que agarrava os corpos aos movimentos da câmara, como se aqueles fossem animados, coreografados por esta, assim amanhecendo uma possibilidade de outra(s) vida(s) para além dos rituais de uma eterna e milagrosa natureza que paralisa.
L’air de rien
“A fuga é um tema que me toca muito” – quem fala agora é Cristèle, a realizadora de Campo de Víboras. “Desde logo, cinematograficamente, pelas personagens que tentam fugir. Mas também é o sentimento que tenho das pessoas de Trás-os-Montes, que querem fugir das aldeias com o sonho de uma ascensão social.” Ao relacionar Campo de Víboras com a anterior Sol Branco, onde uma criança ia atrás do seu fantasma, Cristèle admite uma obsessão por narrativas iniciáticas, “aquilo que se passa entre a infância e a idade adulta”. “A Lurdes [a personagem de Ana Padrão em Campo de Víboras] comporta-se como uma adolescente, tem um lado de menina transgressora”.
A mãe idosa aparece morta num jardim de víboras, Lurdes desaparece, a resolução não é dada porque o essencial é a deriva da personagem e a sua coabitação, dir-se-ia natural, com a inquietude, com os fantasmas. “Essa dimensão interessa-me, obviamente, porque decorre da dimensão psicológica das personagens. Mas o que mais me interessa aqui prende-se com questões que têm a ver com um certo carácter português de entrega ao destino. Há sempre a sensação de uma espada sobre as nossas cabeças. É o nosso fatalismo. Até que ponto a Lurdes é responsável pela morte da mãe? As circunstâncias permanecem inexplicáveis, como se tivesse sido vítima de um malefício... Como nas crenças antigas, que me foram transmitidas pela minha família.”
E sublinha o seu próprio movimento de fuga... “A vontade de sair disso é enorme. A minha educação foi muito conservadora, cristã. Os meus pais eram operários, fugiram à ditadura, depois tiveram uma ascensão social enorme e ficaram agarrados a qualquer coisa de muito materialista. Havia pouca cultura em casa, e senti cedo uma vontade enorme de liberdade, de sair desse mundo fechado. O cinema e as artes foram maneiras de exprimir o elevado, uma forma de catarse.”
Antes do cinema, fez teatro. Aponta como decisivo o encontro com a obra de Jean Genet (“a minha dupla cultura deu-me uma coisa muito esquizofrénica, o Genet questionou muito sobre a identidade, sobre ‘o outro’”). Mas foi Trás-os-Montes que a levou ao cinema. “Não havia outro meio de expressão para contar a força que senti naquelas pessoas e naquelas montanhas. Incluo-me nelas, mesmo se tenho outros pontos de vista, outros utensílios. O que mais me emociona são as paisagens, a luz, os rostos, e compreendi que era impossível contar isso sem ser no cinema”.
Essas terras continuarão na longa-metragem que prepara, Alma Viva. A dimensão onírica também – em Campo de Víboras com um l’air de rien, que é a forma como descreve o minimalismo do seu director de fotografia, Rui Poças, por cujo trabalho se apaixonou quando viu O Fantasma (2000), de João Pedro Rodrigues.
“A questão mais importante, para mim, é como se pode mostrar um indivíduo. Não pode ser só de forma realista. As imagens, o cinema, permitem essa outra dimensão. É a vontade trazer o onirismo a uma obra, de criar uma emoção.” E tal como o realismo e o fantástico são inseparáveis, também a ficção e o documentário são mistura de que Cristèle se quer alimentar. “Decidi que devia ser a câmara a seguir os actores e não o contrário, sobretudo porque os actores não eram profissionais – excepto Ana Padrão.” Que foi “uma evidência”, conta. “Era complicado encontrar actores profissionais que ‘fizessem’ de transmontanos, podia ser caricatura. Com a Ana aconteceu algo: ela é mesmo da aldeia onde filmámos. Leu o guião e quase chorou. Compreendeu a complexidade da Lurdes de forma íntima. Se calhar somos quase primas, as coisas ali são todas misturadas... Queria alguém que fosse muito bonito e que ao mesmo tempo pudesse parecer ‘estragado’. Há um lado agreste e simultaneamente recatado nela.”
Na terra do cinema
Não foi à procura do l’air de rien que Pedro Peralta trabalhou com o director de fotografia João Ribeiro. Viram filmes bíblicos, viram pintura, muita fotografia – pode-se pensar que também viram A Caça (1964), de Manoel de Oliveira, mas esse não, diz Pedro, apesar de, como todos os outros, esse filme o habitar. É a coreografia quase coriácea entre os corpos, gestos, movimentos e a câmara de filmar (Pedro faz uma súmula soberba: é como se todas as coisas estivessem “presas por fios”, bastando puxar por um deles para uma realidade se impor a outra) que passa a experiência e o tempo deste mundo fechado. Não passa despercebido que, nós, espectadores ficamos imobilizados com a câmara enquanto o filho que ascendeu do poço se vai embora – o fim é o centro do filme, é poder respirar um pouco dessa fuga.
Ascensão, filmado no amanhecer da natureza, é de certa maneira um huis clos, é criação de cinema. Mas tal como no caso de Cristèle (percorrendo caminhos tão diferentes estes filmes acabam por falar um com o outro) havia um imperativo para Pedro. Para esta “adaptação livre das estações da cruz” queria fixar uma verdade dos rostos, encontrar “personalidades”, “pessoas que nas suas vidas já fossem o que são as personagens”. Procurou camponeses entre as camponesas - as mulheres - e entre os homens, que entretanto já se deslocaram para a construção civil. Recorde-se o cenário: uma comunidade fechada, uma cultura, rituais e histórias pelos quais Alves Redol se apaixonou e sobre os quais escreveu em Glória uma Aldeia do Ribatejo (1938).
“Sente-se o peso de uma herança latente numa série de códigos, e estamos a 80 quilómetros daqui [de Lisboa]: é uma cultura que é portuguesa, que é ribatejana mas que é particular.” Como ganhar a confiança das pessoas, como lhes falar dessa coisa que é o cinema? Como encontrar o rosto daquele que ascende do poço? Pedro encontrou-o. E esse encontro, possível aliança entre um ícone russo e um rapaz do sul, português, era também o reencontro com a imagem de Bruno, um amigo de Pedro que morreu aos 22 anos, com quem o realizador sonhou durante muito tempo, sonhos que acabavam sempre com Bruno a partir. Pedro já não sonha com Bruno, mas cumpriu a promessa de lhe dedicar um filme. Este tipo de reencontros é um dos milagres que formam a terra do cinema - como já acreditava Pedro Peralta num seu filme de escola, Mupepy Munatim, 2012.