Músicas à volta do mundo, fim-de-semana intenso no CCB
Um mosaico de culturas e geografias povoou esta edição dos Dias da Música, que teve uma taxa de ocupação de 74%. Em 2017 será a vez das “Letras da Música…”, e haverá escritores desafiados a programar concertos.
A viagem de Phileas Fogg, protagonista do famoso romance de Júlio Verne A Volta ao Mundo em 80 dias, serviu de fio condutor ao concerto de encerramento do festival Dias da Música, após um fim-de-semana intenso que mais uma vez inundou auditórios, salas, corredores e espaços abertos do Centro Cultural de Belém (CCB) de música e de um público entusiasta de todas as idades. A Sinfónica Portuguesa, o Coro do Teatro Nacional de São Carlos e as cantoras Cristiana Oliveira e Cátia Moreso percorreram essa lendária rota verniana através de peças orquestrais e árias de ópera que remetem para os países visitados: da Inglaterra vitoriana aos Estados Unidos, passando pelo Egipto, a Índia, a China, o Japão...
O mote da edição deste ano, intitulada “A Volta ao Mundo em 80 Concertos”, traduziu-se num espelho da era da globalização, face à diversidade de propostas, cuja origem geográfica não coincide necessariamente com a tradição ou a cultura musical que representam. Temática sugestiva, mas que ao mesmo tempo permite programar de tudo um pouco. Se por um lado causa uma certa dispersão, por outro suscita descobertas e uma abertura crescente à variedade de géneros e estilos, bem como experiências de fusão, algumas resultantes de trabalho profundo, outras da procura de sucesso fácil junto de novos públicos.
Desta vez a dança também marcou presença, com a colaboração de bailarinos que ensinaram todos os interessados a dançar ao som dos ritmos cubanos, do tango argentino e das sonoridades africanas — uma iniciativa de grande sucesso, que atingiu uma taxa de ocupação de 100%. Prosseguiram iniciativas como os Mini-Dias da Música e Projectar o Futuro com Arte, com a participação de 50 escolas do ensino vocacional da música de todo o país, bem como as oficinas pedagógicas da Fábrica das Artes. Conforme salientou Miguel Leal Coelho, vogal do Conselho de Administração do CCB, “a aposta nos músicos do futuro tem sido uma prioridade, que levou mesmo a uma aposta arriscada em termos de público, mas ganha, como a de programar para o Grande Auditório quatro orquestras de jovens”. Até às 17h de domingo, hora a que o CCB fez o primeiro balanço desta edição, já tinham sido vendidos 22.496 bilhetes dos 30.528 disponíveis e havia 32 concertos esgotados, correspondendo a uma taxa de ocupação de 74%.
Do Sul da Europa a Goa
A viagem da tarde de sábado levou-nos ao concerto Anima di Mare, protagonizado pela voz inconfundível e pelo poder de comunicação de Marco Beasley, cantor com uma carreira paralela nos domínios da música antiga e das músicas de tradição oral do Sul de Itália. Uma viagem pela costa italiana e pelos muitos nomes assumidos pelo Mediterrâneo (Mar da Ligúria, Mar Tirreno, Mar Jónico, Mar Adriático) através de um programa dominado por tarantelas em arranjos engenhosos a partir de melodias tradicionais, mas incluindo também trechos de compositores eruditos da Renascença, como Willaert e Giovanni da Nola. A voz eloquente de Beasley, sempre atento ao significado poético e à teatralidade dos textos, foi acompanhada por exímios instrumentistas para quem a arte da variação e da improvisação não tem segredos: Fabio Accurso no alaúde, Stefano Rocco na guitarra barroca, Leonardo Massa no colascione (instrumento napolitano da família do alaúde) e Vito de Lorenzi, que fez um impressionante solo, na percussão. Marco Beasley alternou o canto com comentários sobre o programa e o conteúdo dos textos — “na sua maioria histórias de amor, quase sempre felizes, mas também algumas tristes” — e mostrou a sua imensa diversidade de emoções: da intensidade expressiva da tarantela Alla Carpinese à divertida Fararirorella de Severino Cornetti, em que o nome da amada D. Fiorella se vê transfigurado pela crescente velocidade do andamento.
Num registo totalmente diferente, a Europa do Sul continuou a dar cartas no concerto do Ensemble Mediterrain, com direcção artística do violoncelista Bruno Borralhinho. Este agrupamento, formado por jovens músicos de orquestras profissionais alemãs, mostrou como é habitual grande consistência técnica e artística e propôs um programa invulgar, pelo menos nas nossas salas de concertos: canções de “inspiração grega” de Shostakovich e Ravel interpretadas pela meio-soprano polaca Karolina Gumos, dotada de um belo timbre, e pela pianista Dunja Robotti, e obras instrumentais de compositores gregos. As Cinco Melodias Populares Gregas de Ravel seriam talvez a obra mais conhecida desta proposta, que incluiu ainda Gero-dimos, de Pavlos Carrer (1829-1896), na versão para quarteto de cordas de Nikos Skalkóttas (1904-1949), por seu turno representado no programa por cinco apelativas danças gregas, fortemente inspiradas na música tradicional. A obra instrumental de maior folêgo, e também mais complexa, não obstante a sua inspiração neo-clássica, foi o sexteto para flauta, quarteto de cordas e piano de Mikis Theodorakis (n. 1925), conhecido como autor das bandas sonoras de filmes como Zorba, o Grego e Serpico, mas com uma produção bastante mais diversificada.
Uma outra etapa desta viagem no tempo e no espaço conduziu-nos ao Oriente. O premiado quarteto vocal The Orlando Consort, cuja carreira se iniciou em 1988 no âmbito do repertório medieval e renascentista, e os músicos indianos Kuljit Bhamra (tabla), Jonathan Mayer (sitar) e Shahid Khan (voz) reuniram-se no concerto Mantra: uma conversação musical pelo Oceano Índico, projecto que remonta a um CD de 2010, evocativo do encontro entre os missionários portugueses e a população de Goa no século XVI. Sabe-se que a Companhia de Jesus utilizava a música e o teatro nos seus colégios e que as naus portuguesas levaram para o Oriente instrumentos musicais europeus. Por outro lado, relatos da época referem o uso de instrumentos tradicionais indianos na igreja e a adaptação de textos católicos a melodias locais. Embora exista repertório religioso mais tardio com matriz ocidental oriundo de Goa com uso do concanim a par do latim (como os Motetes de Goa editados por Manuel Morais), não se sabe como soaria a música resultante desse encontro de culturas na época quinhentista, pelo que não deve confundir-se a proposta do Orlando Consort e dos seus colegas com “interpretação historicamente informada”. É antes uma experiência de fusão e recriação livre, resultante de vários workshops, que dá origem em muitos casos a novas composições. Cada grupo teve direito a uma peça supostamente em estado puro — uma raga indiana (com duração bem mais curta do que a habitual nas práticas originais) e uma bela interpretação do motete Quae est ista de Francisco Guerrero pelo Orlando Consort — mas o resto foi um exercício de apropriação e contaminação, umas vezes mais convincente do que outras, mas revelando sempre grande versatilidade e um diálogo salutar nos dois sentidos. Ouviram-se melodias de cantochão com sobreposição de linhas melódicas e ritmos indianos, textos em latim aplicados a música de carácter hindu, ornamentações usando a técnica vocal indiana incorporadas à textura polifónica da peça de Pedro Escobar e várias outras combinações. Na peça final, Shahid Khan dirigiu a assistência num jogo de interacção através do canto e da marcação do ritmo, que suscitou grande entusiasmo e foi repetido como encore.
De regresso à Europa e a um campo mais convencional, o pianista Louis Lortie apresentou uma das mais emblemáticas obras do Romantismo alusivas à viagem: os três cadernos do ciclo Anos de Peregrinação, de Liszt (que gravou integralmente para a Chandos), repartidos por três recitais. O recital dedicado ao I Ano (Suíça) não encheu, mas o nível da interpretação merecia uma assistência mais numerosa. Trata-se também de uma viagem literária, com referências frequentes a Byron e Schiller, e referências sonoras programáticas bastante explícitas a elementos da paisagem, da natureza ou dos estados de alma do viajante. As referências militares e heróicas evocadas pelos poderosos acordes da Capela de Guilherme Tell, as mágicas texturas aquáticas do lago de Wallenstadt e da fonte, a violenta tempestade (verdadeiro tour de force para o pianista) ou os sons mágicos dos sinos de Genebra, e tantos outros efeitos, exigem do intérprete quer subtileza de colorido e grande domínio dos planos sonoros, quer um virtuosismo técnico por vezes atlético — requisitos aos quais Louis Lortie soube corresponder como grande conhecedor da obra.
Esta emblemática obra de Liszt encaixaria também perfeitamente na temática dos Dias da Música do próximo ano, divulgada ao fim da tarde deste domingo pelo novo presidente do CCB, Elisio Summavielle, e por André Cunha Leal, consultor para a programação musical. Sob a designação Letras de Música… estarão em foco, de 28 a 30 de Abril, a música e as palavras, campo imenso que pode estender-se dos trovadores medievais aos cantautores dos nossos dias, passando por géneros instrumentais inspirados pela literatura como o poema sinfónico. Levantando a ponta do véu, Miguel Leal Coelho acrescentou que alguns escritores serão desafiados a programar concertos.