Nunca umas primárias americanas tiveram tanto impacto como as de 2016. As contradições no país capitalista mais avançado do mundo são hoje mais difíceis de esconder e, às vezes, não é nos gritos histriónicos e racistas de Donald Trump que se escondem as maiores surpresas. Pela primeira vez em muitas décadas, de entre os três candidatos mais visíveis na campanha — Donald Trump, Bernie Sanders e Hillary Clinton —, apenas a última defende o liberalismo económico que tem sido a política externa agressiva que os Estados Unidos impuseram ao mundo.
O mundo perde-se numa condenação mais do que justa das declarações incendiárias do multimilionário Donald Trump: “Nós vamos construir uma muralha na fronteira Sul dos Estados Unidos, e o México é que vai pagar”, “Vamos banir todos os muçulmanos de entrar nos Estados Unidos”, “Vamos extraditar os [11 milhões] de imigrantes ilegais”, “Vamos matar as famílias dos terroristas”. Embora o apelo ao ódio feito por Donald Trump tenha tracção junto de algum eleitorado republicano, o magnata não é de todo consensual dentro da cúpula do partido. E não o é principalmente pelo que diz em matéria económica: é da boca de Trump que têm saído os maiores ataques à globalização e aos tratados de comércio livre que foram promovidos pelos governos dos Estados Unidos desde há 30 anos.
É aqui que Donald Trump encontrou a sua zona de conforto: entre os milhões de trabalhadores brancos e pobres dos Estados Unidos que viram com o avanço da globalização a precarização das suas condições sociais e económicas, com a deslocalização e o "outsourcing" do trabalho, principalmente tecnológico, para a Ásia. Trump destaca-se entre os candidatos republicanos por ser o mais conservador: socialmente e economicamente. Os paralelos com a ascensão de Hitler na Alemanha encontram força também aqui: num programa político de divisão da sociedade, proteccionismo económico exclusivo para os caucasianos e racismo institucional.
Bernie Sanders é o candidato que materializa as reivindicações dos movimentos sociais progressistas mais proeminentes dos últimos anos no país: Occupy Wall Street e Black Lives Matter. A oposição de Bernie Sanders ao neoliberalismo americano vai pelo caminho contrário ao de Trump: aos invés da segregação e divisão, Sanders incorpora o universalismo das propostas para toda a sociedade, como a subida do salário mínimo dos actuais sete dólares para 15 dólares, com a proposta da gratuitidade total do Ensino e da Saúde. Não fora Trump, e Bernie Sanders seria o papão destas eleições, pois apresenta-se como “socialista” e defende um modelo de social-democracia nórdica como exemplo para a sua governação, colocando em causa o poder desmesurada da indústria financeira.
Fascismo dos anos 30
Estas propostas, em conjunto com o ataque ao racismo institucional, em particular à violência policial sobre negros nos Estados Unidos, e a necessidade de integrar os imigrantes na sociedade através de um estado social a construir, são centrais na capacidade de atracção que Sanders tem tido para milhões de pessoas, em particular os jovens precários que foram a base do Occupy e do Black Lives Matter. A justiça económica defendida, principalmente pelo ataque ao poder financeiro de Wall Street, marca outra diferença profunda entre Sanders e Trump, que é um representante inequívoco dos “1%”.
Entre os dois candidatos está Hillary Clinton, a mulher que representa na perfeição o "status quo": ex-primeira dama, ex-senadora, ex-secretária de estado, está numa posição de poder desde os anos 90 e apoiou todas as propostas de liberalização comercial e laboral, as intervenções externas violentas (tanto Sanders como Trump atacam as aventuras militares imperiais no Iraque e Afeganistão), de institucionalização do racismo (como as penas de prisão obrigatórias para crimes menores) e a conivência permanente com a finança e a banca. Apesar disso, ou exactamente por causa disso, é Hillary Clinton a mais que provável futura presidente dos Estados Unidos.
Qualquer que seja o desfecho, assistimos à criação de uma grande brecha na sociedade americana, fruto da globalização e da precariedade. Se é provável que o centrão, representado por Hillary Clinton nestas eleições, saia vencedor nestas eleições, o surgimento de importantes movimentos políticos, já materializados até dentro dos dois principais partidos, tanto à esquerda como à extrema-direita, indica um futuro difícil para o liberalismo económico e a flexibilização do trabalho em convivência com a democracia: as pessoas estão disponíveis para procurar alternativas políticas à degradação permanente da sua vida individual e colectiva.
Se Donald Trump não fosse um racista caminhando a passos largos para uma fotocópia do fascismo dos anos 30 na Europa, seria um adversário praticamente intransponível para a cara da velha política que é Hillary Clinton. Depois das alterações que estão a acontecer na Europa, 2016 pode ser o ano do início de uma reconfiguração política nos Estados Unidos — e uma vez mais com o trabalho no centro.