As palavras e os seus ecos
Na sua primeira exposição individual em Portugal, Ana Torfs dá a ver e a ler os ecos das palavras, num confronto esclarecido com as narrativas das ciências naturais.
Echolalia, de belga Ana Torfs (Mortsel, 1963), pode ser vista como uma exposição em que a arte, sem sacrificar a sua autonomia e indefinição enquanto território, se estende num diálogo com a história da ciência. Para aquele espectador atento e possuidor de uma cultura alargada, esta é uma observação que merecerá pouca ou nenhuma contestação.
Nas quatro instalações patentes na galeria do Centro de Arte Moderna (CAM), da Fundação Calouste Gulbenkian, abundam textos e imagens que fazem referência a métodos, a disciplinas e personalidades das ciências naturais. Vêem-se mapas, plantas, retratos de cientistas e exploradores, tapetes que remetem para cartografias inéditas, classificações de seres vivos. Mas o que move esta artista, que em 2013 participou na Sharjah Biennial, não é o conhecimento científico ou o desejo de fazer qualquer tipo de ciência. O seu posicionamento é claro. Interesse-lhe indagar, por meio do seu pensamento e fabricação, as palavras, a linguagem (da ciência como cultura). A sua repetição, tradução, enfim, os seus ecos.
Nas paredes, exibem-se seis tapeçarias Jacquard nas quais se pode olhar uma pluralidade de imagens. Parecem remeter, em termos cronológicos e estilísticos, para períodos imediatamente anteriores à era moderna. Tecidas sobre a superfície, aparecem bússolas, barcos, animais terrestres e marinhos, plantas, cidades, oceanos. As origens são diversas (gravuras, mapas, pinturas a óleo, desenhos) e cada imagem surge delimitada por um quadrado, mas as relações e combinações sugeridas, não revelam sequências lógicas, e sim uma aleatoriedade que deixa ao espectador duas alternativas: procurar dar sentido ao que vê ou limitar-se a sondar os padrões. O título da peça, TXT (Máquina de Palavras Errantes), permite, contudo estabelecer outras relações. TXT alude à palavra texto, enquanto máquina de palavras errantes tem como inspiração um episódio de As Viagens de Gulliver (1726). Na obra de Graham Swift, o protagonista, chegado à Ilha de Balnibarbi, descobre uma máquina de línguas que produz palavras e livros. Tal automatismo é evocado pela própria tapeçaria, cujo tear (inventada por Joseph-Marie Jacquard) é considerada a primeira máquina programável do mundo. O que parece querer dizer Ana Torfs com estas composições? Que as línguas se formam de modo aleatório, embora maquinal e determinado? Ou que resultam dos efeitos imprevistos e imprevisíveis das relações entre as culturas e os povos? A discreta menção às palavras que deram origem ao trabalho (açúcar, açafrão, chocolate, gengibre, café e tabaco) permite que se aponte para a segunda hipótese.
Como se sublinhou acima, Ana Torfs não pretende fazer ciência, mas a sua obra não enjeita um confronto com esse domínio do conhecimento, nomeadamente com a sua narrativa. Apoiada em disjunções e paradoxos, oferece constelações de outros sentidos, palavras e sons que interrogam os jogos de legitimação do saber, como se constata na complexa e intrigante instalação que é Intriga de Família (2009-10). Feita de molduras de diferentes dimensões, que a artista obscureceu, obrigando assim o espectador a ver melhor (para ler melhor), mostra retratos de homens da ciência, mapas e imagens de flores e frutos. Nas molduras principais, sobre o fundo dos mapas (tornados negativos) desfilam os rostos de Alexander von Humboldt, Friedrich Welwitsch, George Washington (que foi um ilustre cartógrafo), entre outros, mas é Carolus Linnaeus o grande protagonista deste atlas. O botânico, zoólogo e médico sueco formalizou a nomenclatura binomial, que consistia em nomear as plantas e as flores a partir dos nomes dos exploradores, dos patrocinadores das expedições ou dos reis e imperadores europeus. A ironia delicada de Torfs manifesta-se nas ligações que os mapas, as citações e balões de diálogo, estabelecem com os retratos. A intriga a que se refere, embora materializada em belas e sofisticadas imagens, torna presente o lastro do imperialismo ocidental e toda a violência que se esconde sobre as suas palavras, mesmo quando estas só pretendem representar uma singela magnólia.
Pegar nas palavras e transformá-las em imagens, habitadas por cortes, saltos, fissuras, para desvelar as histórias secretas das palavras, eis o que a artista também propõe em Mancha (2012). Em quatro mesas, várias molduras exibem 20 corantes e informação associada, que uma voz gravada vem complementar, enquanto os sentidos (alguns corantes têm os nomes de “vermelho Congo” ou “pardo Bismark”) e as citações se multiplicam. Saliente-se aquele que a artista permite desvelar no design das molduras: este foi apropriado do catálogo da BASF, que nos finais do século XIX desenvolveu a indústria dos corantes para fins bélicos (antes de contribuir, com outras empresas químicas, para a indústria de guerra nazi). A sensualidade geométrica e cromática das molduras também acolhe esta história.
O Papagaio e o Rouxinol, Fantasmagoria (2014) surge como o trabalho mais “pacífico”. Num ecrã, uma intérprete de língua gestual americana (American Sign Language), “fala” com o espectador e duas colunas de sons dão a ouvir o que parecem ser frases de um texto. Na verdade, as palavras estão a reinterpretar (oralmente), e a partir de diferentes linguagens gestuais (de origem anglófila), o que os gestos da intérprete pretendem comunicar: passagens do diário que Cristóvão Colombo escreveu quando chegou à Nova Índia e no qual documentou o seu fascínio pela variedade de árvores, plantas e animais do outro continente. Envolvido por estes sons, que se repetem como ecos, os espectadores entram nos ecrãs em que se projectam imagens de florestas. E aos olhos de quem passa, na confusão das palavras, transformam-se em sombras dos Outros.