Simplesmente Marcelo

Na reportagem da manhã de tomada de posse, os jornalistas das rádios continuavam a falar do “Marcelo” sem lhe colar o pesado cargo institucional de presidente

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Marcelo quer a economia a crescer Sérgio Azenha

Nas ruas, na mesquita de Lisboa, no ambiente mais freak do concerto na Praça do Município, na chegada à Câmara do Porto onde uma mulher chorou de felicidade, no meio do problemático bairro do Cerco, Marcelo Rebelo de Sousa estreou um ambiente novo na vida política portuguesa. Por uns dias, há um político que não é visto com a suspeição do costume. Por momentos, celebra-se uma raríssima união entre o chefe de Estado e a nação. Se houver uma remota possibilidade de um tempo novo no país, esse tempo é o de Marcelo. Um tempo feito pelos portugueses com base na necessidade de terem alguém no poder que lhes seja próximo, que entendam, em quem confiem, gostem e acreditem para os retirar das vidas tristes e sem esperança do presente. Marcelo surge como a versão 3.0 do Presidente-Rei, o líder que, como Sidónio Pais em 1917, chegou para abrir um novo ciclo de expectativa e de esperança.

É óbvio que o presidente se dá bem com o papel de estrela, mas é ilusório pensar que esse papel é apenas um reflexo da sua personalidade. Não é. Tudo aquilo foi reflectido, estudado e executado ao milímetro. O plano de voo é fácil de entender: sobrevoar a influência dos partidos e procurar a fonte do poder numa relação íntima com o povo. Tudo o que pudesse aproximar Belém e as ruas foi aproveitado. Marcelo é afecto, é sorriso, é consenso, é ecumenismo, é tolerância religiosa, é multiculturalismo, é esquerda e é direita, é aliado estratégico do Governo, da Assembleia e de todos os seus partidos, é elo de ligação à Igreja, é promotor da cultura erudita, do rock ou de manifestações mais suburbanas como o rap, preocupa-se com o Porto, com a liberdade e com a modernidade sem descurar a glória do Império nem recusar a crença no milagre de Ourique, o mito fundador da nacionalidade. Sendo isto tudo e conseguindo-o ser ao mesmo tempo com apreciáveis doses de espontaneidade e autenticidade, é normal que queira tornar-se no íman capaz de agregar o grosso da sociedade.  

O discurso de tomada de posse é a prova eloquente de que o presidente não organizou a sua investidura com uma festa diversa e longa apenas por ser na essência um político que adora a frivolidade e o populismo. Marcelo Rebelo de Sousa percebeu que no actual clima de fractura entre os dois “hemisférios políticos” há para ele uma oportunidade única. Como sabe que nem a direita nem a esquerda estão dispostas a conceder-lhe gratuitamente o papel de conciliador, o presidente tinha de buscar músculo para essa estratégia nos portugueses. Tendo-os ao seu lado e deixando à vista de todos essa aliança com o povo na festa e na felicidade da rua, obtém um poder reforçado. Ele é o herói convertido em “servidor desta Pátria de quase nove séculos” que quer recuperar os valores da “identidade nacional feita de solo e sangue”. Olhem se fosse Cavaco e Silva a dizer isto…?

Marcelo Rebelo de Sousa tinha ainda assim de afirmar uma ideologia que lhe norteasse a missão de “cicatrizar feridas destes tão longos anos de sacrifícios”. Também aí falou mais para a sensibilidade média do país do que para o Governo ou a oposição – embora seja impossível não notar que as suas palavras espelhavam muito mais o discurso da esquerda moderada do que da direita. Nenhum português médio recusa a ideia de que as “finanças sãs desacompanhadas de crescimento e emprego podem significar empobrecimento e agravadas injustiças e conflitos sociais”; não é difícil subscrever a teses de que o poder político tem de ser “corrector de injustiças” e de atender com prioridade aos “que a mão invisível apagou, subalternizou ou marginalizou”; é fácil subscrever a tese segundo a qual temos “direito a uma sociedade em que não haja, de modo dramaticamente persistente, dois milhões de pobres, mais de meio milhão em risco de pobreza, e, ainda, chocantes diferenças entre grupos, regiões e classes sociais”. Da mesma forma, está hoje razoavelmente entendido pela maioria dos cidadãos (pelo menos os que votaram no PS, PSD e CDS), que “sem rigor e transparência financeira, o risco de regresso ou de perpetuação das crises é dolorosamente maior”.

Em breve, este estatuto de Presidente-Rei vai sofrer o teste com a realidade. Um dia, tarde ou cedo, Marcelo Rebelo de Sousa vai esgotar o seu capital de festas, solenidades e vistas ao estrangeiro e será convocado a embrulhar-se nos prosaicos negócios da República. Só aí se verá como vai aplicar o enorme capital político que acumulou nos últimos meses. Se for capaz de moderar a crispação, se conseguir fazer passar a mensagem de que Portugal vive tempos difíceis e que o precipício continua ali ao lado, se combater a ilusão demagógica e populista dos que acreditam que a vontade basta para calar os mercados e pôr Bruxelas em sentido, se mantiver presente a ideia de que ainda temos de viver em estado de alerta e de urgência, se for capaz de fazer passar a mensagem de que o país de hoje tem talentos, energias e competências como nunca teve e que, por isso, a crise não é uma fatalidade, terá justificado este excepcional estado de graça e merecido o seu mandato.

2 – Uma empresa australiana, a Scenic, quer investir 15 milhões de euros para explorar o filão do turismo fluvial no Douro. Em Janeiro de 2014 começou a tratar dos procedimentos burocráticos para instalar um cais na ribeira do Porto e encomendou um barco-hotel de luxo aos Estaleiros de Viana do Castelo. Foi então que começaram os problemas. Em Novembro de 2015, a revista Visão dava conta de “uma guerra no cais” e depois de contar o inenarrável processo de dificuldades burocráticas e a pressão que a Douro Azul, a empresa pioneira e hegemónica no negócio, estava naturalmente a exercer, acabava a reportagem com a pergunta: “Haverá lodo no cais?”.  

A Direcção Regional de Cultura do Norte decidira entretanto puxar pelos galões e declara que a Scenic não terá licença para construir o seu cais enquanto a autoridade não emitir um parecer vinculativo, noticiou o Jornal de Notícias. Teriam os outros cais que já estão em operação sido sujeitos à mesma exigência? Não. Porquê? Porque a digníssima autoridade não soube do seu processo de construção. E vão ser objecto de parecer a posteriori? Ninguém responde. Fica-se por isso a saber que há uma empresa estrangeira com um barco pronto a operar que está a ser alvo de especial fúria fiscalizadora porque ousou meter-se num negócio próspero e dominado por um gigante ao qual não foram feitas as mesmas exigências.

O Estado continua a adorar o privilégio dos incumbentes e a execrar a concorrência. Não há por aí um ministro que ponha em ordem estes pequenos poderes protectores?

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