Governo admite intervir na centralização dos direitos televisivos dos clubes
Na primeira entrevista que dá enquanto secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Wengorovius Meneses tenta afastar a desconfiança que a sua surpreendente nomeação gerou no panorama desportivo nacional.
Que conclusão é que se pode tirar da passagem do Desporto para a esfera do Ministério da Educação, abandonando a tutela directa do primeiro-ministro?
Não é uma situação inédita e há outros países europeus em que se verifica esse tipo de alinhamento. A extensão da escolaridade obrigatória até ao 12.º ano torna o período escolar ainda mais decisivo do ponto de vista da aquisição de hábitos de vida saudáveis, designadamente ao nível do desporto. Por outro lado, o Ministério da Educação não tem uma preocupação meramente focada no sistema de ensino e no período escolar obrigatório. Há aqui uma dimensão de educação ao longo da vida que não se esgota nesses 12 anos. A dimensão desporto, enquanto componente decisiva na formação integral do ser humano, para a aquisição de valores humanistas e de competências não cognitivas, no domínio físico, mas também social e afectivo, é fundamental. Se há a vontade de fazer do desporto um desígnio nacional, melhorando os seus índices da sua prática ao nível nacional, então a Educação é uma dimensão chave para que isso possa acontecer.
Não é uma “despromoção” do Desporto e uma perda do seu peso político?
Nós só conseguiremos fazer do desporto efectivamente um desígnio nacional quando ele estiver enraizado enquanto princípio de vida das pessoas de forma individual e colectiva. E a aquisição deste tipo de hábitos e forma de estar na vida adquirem-se, antes de mais, na escola. Acho que é uma grande oportunidade para o Desporto. Temos um grupo de trabalho formado, designado de Desporto/Escola, que pretende procurar formas de, por um lado, aproximar as escolas das comunidades locais, das autarquias, do ponto de vista do desporto. Se houver uma interacção virtuosa e rica entre clubes, escolas e autarquias, pode nascer deste “ecossistema” as bases para transformar o desporto num desígnio nacional. Queremos, ao mesmo tempo, dignificar a disciplina de Educação Física nas escolas e já estamos a estudar algumas medidas para isso. Não considero que haja uma perda de peso político.
O Desporto é uma aposta deste Governo?
É sem dúvida uma aposta deste Governo, apesar das condicionantes de natureza financeira. Ao longo desta legislatura procuraremos criar as bases para uma nova agenda para o desporto e fazer dele um novo desígnio nacional, numa lógica de mais e melhor desporto para mais cidadãos.
A sua designação para a pasta do Desporto foi recebida com alguma reserva, pela ausência de percurso ou intervenções públicas nesta área. O convite também o apanhou de surpresa?
Não posso deixar de dizer que sim. Em certo sentido foi uma surpresa, mas tenho assumido em momentos diferentes da minha vida profissional diversos desafios para os quais não estaria à priori qualificado e correram bem. Tive uma proximidade com António Costa na Câmara Municipal de Lisboa e um dos desafios que me fez, que mais marcou a minha passagem pela autarquia, foi coordenar a reabilitação da Mouraria, apesar de eu não ser engenheiro ou arquitecto e de nunca ter intervindo ao nível da reabilitação urbana. Sou formado em gestão, estive um curto período de tempo no sector privado e trabalhei sobretudo em associações e nada fazia prever aquilo que viria a ser o meu percurso. Antes de assumir esta pasta, estava a trabalhar com empreendedores da área da moda, do design e da música.
Essa falta de passado ao nível do Desporto pode ser um problema?
Penso que se pode mitigar essa falta de conhecimento profundo das matérias do Desporto com uma equipa competente. E, por outro lado, procurar ter um olhar de fora, um olhar fresco e até inovador. A grande vantagem de quem chega de fora é que muitas vezes vê coisas que, para quem está dentro do sistema, já não são nada óbvias. Pode fazer-se das aparentes debilidades uma força e uma possibilidade de renovação positiva.
Pediu algum tempo depois da sua tomada de posse para se familiarizar com a área do Desporto. Já se sente mais à vontade com a pasta?
Ao fim de três meses é evidente que ainda há uma série de dimensões, inclusivamente históricas, e intervenientes que irei conhecer melhor ao longo da minha interacção com o sistema desportivo. Tenho tido uma agenda muito preenchida e o processo de aprendizagem, nestas funções, tem de ser vertical. A descolagem tem de ser idêntica à de um foguetão e não de um avião. Estou neste cargo com o fascínio de quem o exerce pela primeira pela vez, com o fascínio da novidade e do que é novo, mas irá levar um certo tempo. O aspecto decisivo para o exercício de cargos políticos é ter a capacidade de aprendizagem rápida, ser um bom mediador de conflitos, ter um olhar prospectivo e motivar todos os participantes no projecto a atingirem os objectivos.
Na sua primeira comunicação pública, depois de assumir o cargo, anunciou que o Governo está empenhado em dar origem a uma “nova agenda para o desporto nacional”. Quer especificar?
Eu próprio ainda não sei e aquilo que fiz foi definir um método para chegar à resposta, que assenta na elaboração e construção de um plano estratégico para o Desporto nacional, que terá um horizonte de 2018 a 2022. É um plano estratégico muito abrangente e variado, que vai desde o desporto de alto rendimento ao desporto para todos e inclui as diversas dimensões derivadas do desporto, como as económicas ou relacionadas com o turismo, mas passando também pelo desenho do espaço urbano e à educação. Esta estratégia será o mais holística possível. Este período de construção do plano estratégico irá durar um ano e culminará com um Congresso Nacional do Desporto.
Muitas organizações desportivas estão apreensivas com os atrasos decorrentes da aprovação do Orçamento de Estado. Tendo em conta o seu elevado grau de dependência do Estado esta situação tornar-se particularmente dramática em ano Olímpico?
Primeiro quero dar um sinal de tranquilidade às federações. Aquelas que têm contratos-programa com o IPDJ [Instituto Português do Desporto e da Juventude, dependente da Secretaria de Estado da Juventude e Desporto] tiveram uma extensão dos mesmos para o primeiro trimestre deste ano e estamos ainda dentro desse período. O nosso compromisso é de não haver descontinuidades no financiamento, nem perturbações de qualquer natureza.
A proposta de orçamento para o IPDJ para 2016 prevê 72,6 milhões de euros, um acréscimo de 2,1 milhões em relação ao ano passado. É suficiente?
Gostávamos de ter mais meios para apoiar as federações e os clubes e estamos a estudar formas de alargar essa verba prevista em sede de Orçamento de Estado. Temos direito a uma percentagem das receitas líquidas dos Jogos da Santa Casa, que têm vindo a crescer progressivamente nos últimos tempos, prevendo-se um aumento de 8% para este ano. No que nos diz respeito, ficamos com 70,05% de 13,36% dos jogos sociais, que são o Totoloto, Euromilhões e Totobola. Já as receitas do Placard são para distribuição directa às modalidades envolvidas. Com o aumento das receitas provenientes destes jogos, estamos confiantes de podermos reforçar o orçamento do IPDJ.
Vai manter em funções o actual presidente do IPDJ, Augusto Baganha?
É uma decisão que não seria para tornar pública, já que é um assunto de funcionamento interno. As nossas preocupações centrais são assegurar competência técnica nos diversos agentes envolvidos, assim como assegurar a compreensão e a motivação para um determinado programa do Governo, que é diferente do anterior. Depois, há outros aspectos importantes a ter em consideração, como a avaliação que se possa fazer dos últimos quatro anos de actividade, quer do IPDJ quer das outras entidades tuteladas e que não pode ser feita de forma apressada.
Essa avaliação está em curso?
Sim, está a decorrer e tem de ser feita com serenidade.
Considera que o cargo de presidente do IPDJ é de confiança política?
Sabemos que a nomeação de dirigentes na administração pública mudou, porque a lei foi alterada. Com a introdução da CReSAP [Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública] as descontinuidades deixaram de ser a regra. Enquanto tivermos este enquadramento legislativo actual, temos o dever de o acatar e assumir, na liberdade de poder agir noutro sentido. Sou formado em gestão e tenho alguma familiaridade com contabilidade, por exemplo, e a primeira coisa que me preocupou quando assumi este cargo foi o facto do IPDJ não ter contas anuais nem publicitadas nem certificadas, ao contrário do que prevê a lei dos institutos públicos. Já tive oportunidade de reunir com o fiscal único do IPDJ e não é confortável tomar posse e tutelar o instituto sem contas publicitadas e sem certificação legal.
O anterior SEJD Emídio Guerreiro garantiu que o seu sucessor não iria encontrar o IPDJ na situação dramática do ponto de vista financeiro que ele diz ter herdado, com dívidas de 12,2 milhões de euros…
Não vou entrar nessa dança dos números, nem estou a fazer a autópsia da situação. Agora, não sei a situação que vou encontrar porque as contas não estão publicitadas nem certificadas e temos de compreender os motivos para isso. Estamos um pouco às escuras e isso gera um desconforto, mas não levanta suspeitas.
Augusto Baganha não explicou as razões?
Explicou, mas as justificações têm de ser validadas e analisadas. Para termos uma certeza cabal do que possa estar em causa, se calhar, temos de proceder a uma auditoria para compreender. Mas estes procedimentos têm regras e tramitações próprias. Tenho o maior respeito pelo meu antecessor e por todas as pessoas que compõem o figurino de entidades tuteladas ou semi-tuteladas, mas temos de avaliar com frieza se há competência, se há compreensão do que se pretende com este programa de Governo, se há motivação e se aquilo que foi feito nos últimos quatro anos reúne as condições mínimas para continuar. Por tudo isto, não garanto nem deixo de garantir a continuidade da actual direcção do IPDJ para esta legislatura.
Como reage às recentes declarações à RTP do presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP), Rogério Jóia, que acusou responsáveis por organizações estatais ligadas à Justiça de furtarem informações para as fornecerem a pessoas ligadas ao desporto, tentando condicionar e coagir decisões ou nomeações?
É grave, de facto e reagi chamando o dr. Rogério Jóia na última terça-feira. Desconhecia que ele iria prestar aquele tipo de declarações, o que não deveria ter acontecido já que sou o responsável pela entidade que tutela a ADoP. Convém compreender que este organismo é uma entidade inspectora e tem uma certa autonomia de acção. O que disse ao presidente da ADoP foi que estas declarações não se podem fazer de ânimo leve, porque lançam um alarme social que não é desejável nunca e menos ainda em ano Olímpico. Não podemos fazer julgamentos sumários na praça pública ou lançar suspeições sem as concretizar. Poderemos estar perante crimes graves e o dr. Rogério Jóia transmitiu-me que iria apresentar uma denúncia ao Ministério Público e fundamentar as suas acusações. Quero acreditar que há, de facto, fundamento e que terão espessura suficiente para justificar este alarme social.
O Laboratório de Análises de Dopagem corre o risco de perder a acreditação internacional. A concretizar-se será um duro golpe para a credibilidade do sistema desportivo nacional?
Já assegurámos a certificação até ao final deste ano, mas ela pode perder-se a qualquer momento. A Agência Mundial Antidopagem (AMA) fez-nos um conjunto de exigências (após uma inspecção surpresa) que, por um lado, têm a ver com tecnologia disponível para análises, por outro por estarmos a exceder o tempo máximo para análise das amostras. Em terceiro lugar, pede uma separação entre o Laboratório e a ADoP, que têm de ser entidades autónomas devido a potenciais conflitos de interesses. Estes são os aspectos principais e estamos a ponderar soluções para a tutela do Laboratório, existindo a possibilidade de ficar associado a um centro de investigação universitário. Comprometemo-nos em fazer os investimentos que a AMA pediu e esta é uma herança que me deixou o meu antecessor, já que será necessário adquirir equipamentos de valor superior a um milhão de euros.
Que expectativas é que tem para os Jogos Olímpicos e Paralímpicos no Rio de Janeiro?
Não tenho uma abordagem ao desporto muito assente nas medalhas, apesar de reconhecer que elas dão visibilidade ao país e reconhecem o esforço dos atletas e de todos os agentes envolvidos. Mas não quero fazer disso um peso ou uma obrigação. Só o facto de termos tantos atletas qualificados para os Jogos já é um feito digno de registo.
Partilha as críticas que têm sido feitas aos Centros de Alto Rendimento (CAR), nomeadamente pelo presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP), José Manuel Constantino, que considera que muitos destes equipamentos não foram devidamente planeados em termos de sustentabilidade?
É evidente que teria sido mais simples concentrar estes equipamentos em zonas de maior densidade urbana e onde existissem já infra-estruturas desportivas significativas, como aconteceu em Espanha e em França. Mas isso também traduz uma visão um pouco redutora e desequilibrada do ponto de vista do modelo de desenvolvimento do país. Existe depois o desafio de os manter de forma viável e sustentável para que não sejam meros centros de treino. Em alguns CAR admito que ainda há etapas a cumprir. Foi feito um investimento de 100 milhões de euros nestes equipamentos, que seria impossível nas condições actuais, e temos de encontrar condições para os viabilizar e vitalizar.
É adepto de futebol?
Sim, mas não sofro muito.
Tem clube?
Sou do Sporting.
De que forma encara este clima de crispação em que vivem os principais clubes portugueses?
Com grande desagrado. Este clima belicista é o contrário daquilo que se pretende que o desporto seja e dá um péssimo exemplo aos mais jovens. Cabe-me ser mediador e assumo essa responsabilidade de ajudar a resolver conflitos e a serenar esse tipo de ânimos.
Já esteve com o presidente da Federação Portuguesa de Futebol, Fernando Gomes?
Temos tido uma relação muito cordial e aberta e já nos reunimos mais do que uma vez. Em breve teremos a inauguração da Cidade do Futebol, no Jamor, e o presidente da FPF já me transmitiu que este equipamento terá uma ligação às escolas. O futebol merece esta infra-estrutura, que lhe trará uma maior dignidade.
Acha que o Estado deveria ter intervindo e estimulado a centralização dos direitos televisivos dos clubes para garantir uma maior solidariedade entre os “grandes” e os “pequenos”, como aconteceu em Espanha?
Só Portugal e a Ucrânia é que têm uma negociação individualizada entre as ligas europeias. É evidente que eu preferiria uma situação menos assimétrica do ponto de vista desportivo, mas os clubes assim não o decidiram ao não chegarem a entendimento para uma centralização. Penso que devemos caminhar nesse sentido, mas com o tempo necessário para que as coisas possam amadurecer de forma sustentável. Antes de uma intervenção do Governo, de cima para baixo, tem de haver uma compreensão de baixo para cima em clima de diálogo. Se estes contratos celebrados pelos principais clubes portugueses tiverem uma duração mínima de três anos teremos de respeitar este prazo, mas acho que findo este período o Governo poderia equacionar uma intervenção no sentido de procurar disciplinar um pouco a distribuição destas receitas.
Ascenso Simões, deputado do PS, pediu recentemente a sua intervenção junto dos vários reguladores do mercado para apurar a isenção e transparência dos contratos celebrados entre o Benfica, FC Por e Sporting com os operadores de telecomunicações…
Há aqui uma dimensão económica e outra desportiva. O que o Governo começou por dizer é que havia aqui uma dimensão que tinha a ver com a ANACOM, com a Entidade Reguladora da Comunicação Social, no que diz respeito ao acesso a conteúdos televisivos. Depois, outra dimensão tem a ver com a Autoridade da Concorrência e com um eventual desvirtuamento das regras da concorrência. Mas isto não tem a ver com a minha tutela. O meu primeiro dever é esperar por uma análise das três entidades reguladoras que referi e perceber que análise fazem destes contratos.
Que posição tem em relação ao acordo estabelecido com uma empresa chinesa para patrocinar a II Liga, que poderá passar pela chegada de futebolistas chineses aos principais clubes?
Já reuni com Pedro Proença [presidente da Liga Portuguesa de Futebol Profissional] e ele garantiu-me que não há nenhuma obrigatoriedade ou quota para os jogadores chineses jogarem na II Liga. O que existe é um intercâmbio formativo entre atletas chineses e portugueses, o que é bom. Vejo como positivo este investimento que irá valorizar a competição, porque permite um investimento directo estrangeiro e a possibilidade de “exportação” de técnicos e atletas para a China que é um mercado imenso. Tudo isso irá valorizar fortemente o sistema desportivo nacional.