Arguido dos vistos gold beneficiou familiar de ministra
Um dia depois da publicação desta notícia, a ministra da Justiça diz que nem sequer conhece a pessoa envolvida no caso. Suspeito foi apanhado nas escutas a queixar-se de pressões da magistrada.
As pressões do principal arguido do processo dos vistos gold, António Figueiredo, aceleraram e limaram arestas no processo de concessão de nacionalidade a um familiar da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem.
O caso remonta ao final de 2013, altura em estava prestes a expirar a autorização de residência do filho de um sobrinho da governante, que na altura desempenhava funções de procuradora-geral distrital de Lisboa. Mário Alves da Costa, de 20 anos, era estudante e queria ir ter com a família a Angola nesse Natal, mas via os dias a passar e nada de o assunto se resolver. Apesar de estar a estudar em Portugal, se fosse podia não conseguir voltar a entrar, explicou ao PÚBLICO o jovem.
Como em muitos casos que aparecem documentados neste processo dos vistos, em que alguém conhece sempre outro alguém disposto a interceder por um conhecido seu, também a família de Mário Costa, cujo pai é sobrinho de Francisca Van Dunem, tinha conhecimentos que lhe permitiam olear os sinuosos canais da burocracia portuguesa.
É assim que se põe em campo uma reputada advogada angolana, Paula Godinho. Próxima do presidente do Instituto dos Registos e Notariado, António Figueiredo, não hesita em ligar-lhe para lhe pedir “um carinho”. Como este já estava a ser investigado por suspeitas de corrupção e tráfico de influência, entre outros crimes, foi apanhada nas escutas da Polícia Judiciária. “Ele é filho de muito boas famílias, isso posso eu garantir-te. São pessoas de bem”, insiste a jurista. O presidente do IRN alerta-a para a existência de problemas no processo de obtenção de nacionalidade, que se desvanecem, porém, quando a sua interlocutora explica que o pai de Mário Costa é familiar “da Francisca, da vossa procuradora-geral-adjunta”.
“Ah. Hum. Ai é, da Francisca Van Dunem? Amanhã telefono directamente para o doutor Manuel Palos, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras”, promete António Figueiredo, falta uma dúzia de dias para o Natal. O seu empenho irá dar frutos: cinco dias mais tarde o director nacional dos Estrangeiros e Fronteiras, Manuel Palos, igualmente arguido neste processo, assina a certidão que atesta que Mário Costa reside legalmente em Portugal desde Outubro de 2003. Objectivo: obter a nacionalidade e com ela o cartão de cidadão e o passaporte.
É verdade que em 2010 a não renovação atempada de uma autorização de residência tinha trazido ao jovem o dissabor de uma multa de 295 euros, e que um despacho do próprio Manuel Palos determinava que, nos casos de caducidade do direito de residência, a contagem de prazos para efeitos de aquisição de nacionalidade era interrompida.
Mas segundo o Ministério Público, o dirigente dos Estrangeiros e Fronteiras fazia a António Figueiredo os favores que este lhe pedia, por temer ser afastado do cargo pelo então ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, com quem o primeiro tinha boas relações. E este caso não constituiu excepção. “Há ali uma interrupção no tempo de residência, não perfaz o tempo todo… temos mas é que dar a volta a isto”, concede Manuel Palos.
António Figueiredo entra em stress quando percebe que, apesar de todas as suas pressões, os serviços podem não conseguir despachar tudo a tempo do voo do rapaz, marcado para uma quinta-feira, 19 de Dezembro. Dois dias antes desabafa com um amigo que, tal como ele, virá um ano mais tarde a ser constituído arguido no caso dos vistos dourados, o empresário Jaime Gomes: “Tenho aqui a dra Francisca Van Dunem que tem o sobrinho que precisa da nacionalidade. Estou com aquilo pendente há dois ou três meses. Já têm a informação de toda a gente, já falei com o SIS [Serviço de Informações de Segurança], já falei com as polícias todas… tá aquela porcaria pendente no SEF há um mês e tal e não me conseguem dar a informação… já me disseram que a informação que vai ser dada é favorável, já me disseram que iam dar há oito dias, há quinze dias. Já não tenho paciência para isto, é uma coisa inacreditável (…) Vou ter de falar com o Manuel Palos, tenho a criatura Francisca Van Dunem a dizer que o sobrinho tinha avião marcado para Angola, que não vai passar o Natal a casa porque tenho o raio de uma informação pendente há um mês”. António Figueiredo chega a desabafar também com o próprio requerente de nacionalidade: “Eu não posso fazer mais, já pressionei junto de todas as entidades”.
Solicitada para o efeito, a ministra da Justiça não quis pronunciar-se sobre a sua intervenção neste caso, tendo remetido qualquer informação para os esclarecimentos que deu ao PÚBLICO a 21 de Janeiro passado sobre uma outra situação envolvendo a aquisição de nacionalidade de uma familiar sua. Nesse caso, Francisca Van Dunem admitiu ter conseguido atendimento personalizado numa conservatória através de António Figueiredo, para obter esclarecimentos sobre a situação da familiar em questão. Segundo a ministra, a especialista que a atendeu disse-lhe que não havia hipótese de a interessada conseguir nacionalidade portuguesa, razão pela qual nem chegou a dar entrada nos serviços nenhum pedido nesse sentido. No caso de Mário Costa, garantiu ter prestado ao PÚBLICO, na passada sexta-feira, “todos os esclarecimentos relevantes para os factos” – apesar de isso não ter de todo sucedido, uma vez que se remeteu ao silêncio relativamente a esta situação. Já esta segunda-feira, uma assessora de imprensa de Francisca Van Dunem informou que a governante "nunca teve qualquer contacto com o então director-geral dos Registos e Notariado sobre o processo mencionado, que ignora em absoluto, não conhecendo igualmente o estudante envolvido". Que, "a ser seu familiar, terá consigo uma relação de parentesco longínqua".
O estudante recorda-se da intervenção de Paula Godinho no processo, mas diz não acreditar que a procuradora tenha recorrido ao mesmo tipo de expedientes: “Não tenho ideia se aconteceu, mas duvido. A nossa relação familiar não é muito próxima”.
A 18 de Dezembro de 2013, véspera da data do seu embarque, António Figueiredo ligou-lhe finalmente com boas notícias: “Atão, isto tem sido um stress. Complicado, tive que pôr os meus serviços e os dos outros a funcionar. Que esta gente não responde, como já viu não é fácil. Já tenho o cartão do cidadão à sua espera e o passaporte fica pronto logo à tarde”. Mário Costa agradece. “Um abraço e boas festas”, despede-se o solícito presidente do Instituto dos Registos e do Notariado.
Notícia actualizada a 01/02/2016, com informação prestada esta segunda-feira pela chefe de gabinete da ministra da Justiça.