Uma semana de cinema em Teerão
Tão forte é a “impressão do real” característica do cinema iraniano que nos chega, que há algo de “familiar” em Teerão.
Nas décadas recentes o Irão tornou-se num território de referência na experiência do mundo possibilitada pelo cinema. O facto deve-se não à considerável escala da sua produção, com cerca de 300 filmes por ano, mas a um “cinema de autor” de forte pendor realista e com características distintivas como a particular atenção a certos grupos sociais de algum modo nas franjas, como as mulheres ou as figuras da infância e adolescência.
Ao mesmo tempo temos periodicamente notícias de repressão sobre os cineastas – como sobre os activistas dos direitos humanos, as mulheres que infringem interditos, os homossexuais. A repressão da “revolução verde” com os gigantescos protestos contra as eleições fraudulentas de 2009, em que Mahmoud Ahmadinejah foi reeleito, atingiram também duramente o cinema. Vários realizadores foram condenados e proibidos de filmar, casos de Jafar Panahi, Mohammad Rasoulof e outros.
Ocorre agora o caso de Keywan Karimi, condenado por blasfémia e de insulto aos valores sagrados, por causa do documentário Escrever na Cidade, sobre os graffiti políticos que nas paredes de Teerão, e porque um filme seu teria uma cena de beijo de um casal, o que o próprio desmente, dizendo que isso estava no argumento mas que a actriz se recusou.
E, no entanto, o Irão é um país, ou uma produção cinematográfica – ou uma vertente dessa - que não nos deixa de surpreender: como é possível num regime tão autocrático como o dos ayatollahs no poder existir um cinema que apesar de todas as restrições se move e não deixa de nos surpreender?
Mais: é próprio dos sistemas ditatoriais e autocráticos – de que a República Islâmica do Irão é um expoente – um apertado controle sobre as abordagens do real. O paradoxo, ou a singularidade é esta: o cinema iraniano conseguiu contudo distinguir-se por um realismo muito próximo, esquivando-se às temáticas mais directamente políticas, que de qualquer modo seriam interditas, para abordar lateralmente as situações sociais através dos seus objectos de olhar privilegiados.
Mais ainda: se o grande mestre, e um dos máximos cineastas contemporâneos, Abbas Kiarostami, está hoje numa situação de semi-exílio ou penumbra, continuando a viver em Teerão mas fazendo filmes no exterior (prepara o próximo, a ser rodado na China), filmes que são ignorados no Irão, alguns cineastas condenados conseguem continuar a realizar obras, caso em especial de Panahi, fazendo sucessivamente Isto Não É um Filme, Cortina Fechada e Táxi, como de Rasoulof, com Os Manuscritos Não Ardem.
Esta situação é enigmática: como é possível uma tão forte tendência realista – como em nenhuma outra cinematografia – num país e num regime com um controle ideológico e uma censura tão apertados?
Sucedeu-me receber um convite, também ele algo enigmático, para ser membro do júri no Cinéma-Vérité, um festival documental em Teerão, de resto de título bizarro: como é possível, dados todos os constrangimentos, haver um evento com o título de uma escola do documentarismo, de que o expoente foi Jean Rouch, e reivindicando-se, qual manifesto, da “Verdade”? Foi a ocasião de tentar averiguar in loco a intricada situação do cinema iraniano e mesmo do país, ainda que limitada especificamente à capital.
Tão forte é a “impressão do real” característica do cinema iraniano que nos chega, que há algo de “familiar” em Teerão. Dir-se-ia que já conhecemos bem a imagem panorâmica da cidade, com as montanhas a Norte e a torre das telecomunicações sobressaindo na altura, mesmo algumas das praças ou até as características das ruas e do tráfego.
Assim é, de facto, ou antes, é e não é. A “impressão do real” que recolhemos de filmes como o espantoso 10 de Kiarostami ou recentemente Táxi de Panahi, ainda assim, pelas características da sua feitura, sobretudo dentro de veículos, com câmara digital, não nos veicula a má qualidade da construção e sobretudo a inacreditável intensidade do trânsito, com engarrafamentos constantes – por vezes monstruosos – e as alucinantes manobras sobretudo dos táxis e motos – e são centenas de milhares, uns e outras!
E obviamente o cinema não nos dá uma sensação aproximada que seja do que pode ser uma experiência terrífica: os níveis de poluição, que conduzem mesmo a fortes reacções físicas e dificuldades respiratória – durante a minha estadia a poluição atingiu tais níveis que foi até decretado o encerramento das escolas durante dois dias. A idade do parque automóvel, a péssima qualidade da gasolina e do gasóleo, como dos escapes, são a razão desta poluição.
Como uma tal circulação, também mais se percebe que os carros sejam o cenário preponderante ou quase exclusivo como os citados 10 e Táxi, pesem ainda os constrangimentos de rodagem.
Nas ruas continuam largamente dominantes os homens com barba e as mulheres completamente vestidas pelo chador negro. No entanto há já também muitas mulheres, sobretudo jovens, que antes usam o hijab, o véu islâmico (apenas o véu, de resto com frequência deixando entrever os cabelos), claro que com todo o corpo recoberto, mas antes com calças e vestidos e túnicas até ao joelho.
Para além do choque com os níveis de má construção, tráfego e níveis de poluição, de uma fealdade espalhada (mesmo que com marcas de um passado esplendoroso ou a experiência inaudita do imenso bazar central), para além das centenas de mesquitas (mas a colossal grande mesquita continua a ser edificada há já 15 ou 20 anos – e também me deparei, surpreso, com uma igreja, arménia, comunidade outrora forte em Teerão), para além sobretudos dos constantes e altamente reveladores cartazes com as figuras dos líderes religiosos, Khomeini e agora Khamenei), as ruas de Teerão também nos trazem a surpresa da existência de um sem-número de bancos (!), asseguram-me que nenhum estritamente privado, antes ramificações do aparelho empresarial estatal. E, sempre, sempre, é saliente o uso do chador e do hijab pelas mulheres.
Não há que postular – seria absurdo e impossível – que um cinema marcadamente realista requeira, por isso mesmo, uma verificação in loco para se “aferir” do seu grau de “verdade”, de cinema-verdade. Mas a experiência aproximada das ruas de Teerão permite confirmar o que se intuía: se Isto Não É um Filme é um manifesto que nos deixa estupefactos (ainda que dos filmes que Panahi fez depois da sua condenação o mais complexo dramaturgicamente seja Cortina Fechada – Táxi, pelo contrário, é o mais premeditadamente “acessível” na solicitação imediata de uma “simpatia”), se Os Manuscritos Não Ardem é um incrível thriller político (ocorre lembrar o cinema americano dos anos 70, sobretudo The Parallax View de Alan J. Pakula), o gesto mais radical e desafiante é o do penúltimo capítulo de Dez, quando uma mulher tira o hijab e deixa por completo à vista o cabelo cortado.
Estas regras de indumentária nas mulheres constatam-se nas ruas e no espaço público, porque quando se entra numa casa privada a primeira coisa que elas fazem é tirar o hijab, considerado símbolo da opressão. Por muito que seja o controle ideológico e dos costumes – de resto, mais que uma forte presença da religião há sim um fundamento religioso para os mecanismos de controle político e social, e são estes que importam – há zonas, ainda que confinadas, de “liberdade” ou “normalidade” em termos ocidentais. É isso que um visitante vai apercebendo também no cinema e nas artes em geral, que sob o manto apertado da censura e das limitações existe um espaço de subentenditos, contudo muito vezes imediatamente perceptíveis para o específico público local.
Na abertura do festival houve uma homenagem a um realizador iraniano recentemente falecido, Mohammadreza Moghdassian. O seu último filme, apresentado nessa ocasião, Top Top Secret, decorre na redação de um jornal satírico (no Irão), e centra-se nos limites da liberdade dos cartoons, se este ou aquele podem ou não passar, se infringem ou não a censura, se passem ou não a “linha vermelha”, com a risca e o bip no próprio filme. E na projeção o público exaltava, compreendendo e fruindo do jogo com as regras censórias e do regime.
Estar uma semana em Teerão é substancialmente estar isolado do mundo – há a internet, mas o menu dos canais de televisão é “selecionado”, e apenas existe, com notícias do mundo, um jornal em inglês de circulação restrita, Financial Tribune, sintoma do pragmatismo que caracteriza a administração do presidente Rouhani, centrada na recuperação económica – donde as cedências e o acordo num dossier antes imperativo, o do nuclear.
O convívio com os anfitriões e outros deixa-nos a percepção da existência de uma burguesia, como de um sector etário, social e intelectual de que os elementos que a primeira coisa que fazem detestavam Ahmadinejad – não que sejam simpatizantes de Rouhani, que acham limitado a fazer o damage control. Mas há questões que são recorrentes, como a inquietação com o Daesh (e no festival pude pela 1º vez ver um número significativo de filmes sobre a matéria) ou a incompreensão pela generalizada indiferença internacional pela repressão da maioria xiita no Bahrein.
Mesmo que por vezes à custa de muitas insistências, por vezes há surpresas, como as de ouvir rock iraniano, de nos chamarem a atenção para uma inscrição, “Abaixo os mulhaas”, ou de se conseguir ir ao Museu de Arte Contemporânea, construído nos tempos do último Xá por vontade de sua mulher e pelo menos em tempos tido como tendo noutro espaço a maior colecção de arte moderna e contemporânea.
No exterior apenas há indicação da exposição temporária, sempre dedicada a um artista iraniano – e mais não se sabe, o que estará patente do acervo. Mas entra-se e logo se vê Lichenstein, mais Oldenburg, Warhol, Jim Dine e Jasper Johns, mas em cima, qual olhar de vigia, está o inevitável cartaz com Kohmeini e Khamenei!
Pode-se ler, a título justificativo, que a “libertação” suscitada pela arte moderna se combinou com “as energias da revolução islâmica”, que “o modernismo iraniano” é afinal “um outro modernismo” – há este permanente jogo entre a legitimação do híper-ideológico discurso religioso e zonas que de outro modo estariam interditas.
Isso ocorre aliás no nome do próprio festival, “Cinema-Verité”. Ao contrário do que suporíamos, não há apenas uma referência documentarista, mas “a verdade” é apresentada como tendo fundamento num preceito do fundador do xiismo, o Imã Ali, “a verdade é o melhor guia”, e há as citações dos líderes espirituais. Do mesmo modo, o festival tem também um prémio específico a consagrar os “valores islâmicos”.
Numa praça de Teerão há um enorme cartaz em que a fotografia da bandeira hasteada em Iwo Jima é usada para figurar os ataques e sofrimentos infligidos pelos americanos – que permanecem um horrendo inimigo “infiel” – a iranianos e muçulmanos. Mas no festival havia também uma retrospectiva de D. A. Pennebaker e uma secção de filmes americanos – sempre estas zonas de duplicidade…
De resto, afinal como é possível fazer um tal festival num regime tão estritamente teocrático e com tais regras de censura? Os discursos oficiais, que são um suplício, insistem sempre nos preceitos, e a questão da liberdade na escolha da programação é contornada. Mas descobre-se, sem dificuldade, que no topo da hierarquia figura um “diretor” que é tão só um delegado ideológico, com poderes para fazer cortes ou excluir um filme selecionado, com o pretexto que “é imoral”, o cúmulo do oximoro sendo acrescentar que faz isso “para defender o festival”.
E é com este jogo intrincado que em Teerão se pode ver cinema internacional e o visitante conhecer também in loco o cinema iraniano.