O que os cientistas descobriram na Gronelândia pode aumentar ainda mais o nível do mar
Pensava-se que uma camada de 80 metros de gelo poroso na Gronelândia estava a reter parte da água derretida à superfície. Mas nos últimos anos, descobriu-se agora, este mecanismo tem estado a desaparecer.
A subida da temperatura global pode estar a afectar a camada de gelo da Gronelândia – e a sua contribuição para o aumento do nível médio do mar – de uma forma mais grave do que os cientistas imaginavam, revela um novo estudo. As alterações recentes no gelo parecem ter afectado a sua capacidade de armazenar o excesso de água, o que significa que uma maior quantidade de gelo derretido poderá estar a ir para o oceano.
Os cientistas dizem que a camada de gelo da Gronelândia já perdeu mais de nove biliões (milhões de milhões) de toneladas de gelo no último século – e a rapidez do derretimento continua a aumentar à medida que as temperaturas vão subindo.
A agência espacial norte-americana NASA estima que a camada de gelo da Gronelândia está a perder anualmente cerca de 287.000 milhões de toneladas, em parte por causa do derretimento superficial e em parte por causa de pedaços de gelo que se partem dos glaciares e caem para o oceano. Como esta enorme camada de gelo tem o potencial de aumentar bastante o nível médio do mar [se todo o gelo da Gronelândia derretesse, o nível médio do mar subiria cerca de sete metros], os cientistas têm estado especialmente atentos ao seu comportamento e aos fenómenos que podem acelerar o seu derretimento.
O novo estudo, publicado na revista Nature Climate Change, centrou-se numa parte do gelo designada por firn (uma palavra alemã). [Este é o nome dado à neve endurecida, que vai ficando tapada pela neve que cai por cima e volta a cristalizar nos anos seguintes, tornando-se mais densa, mas não alcançando ainda a densidade do gelo. A camada de “firn” é porosa e atinge os 80 metros de profundidade, de acordo com o artigo.]
O firn é considerado uma parte importante da camada de gelo porque consegue capturar e acumular o excesso de água antes de ela escoar da superfície dos glaciares. [Até agora, os cientistas estimavam que o firn pudesse sequestrar entre 30 e 40% do gelo derretido.] Este serviço da natureza acaba por ser essencial porque ajuda a mitigar o aumento do nível médio do mar que de outro modo aconteceria, se toda a água derretida fugisse do glaciar.
“Como esta camada é porosa e como os poros estão ligados entre si, em teoria todos os poros nesta camada de gelo recente poderão ser usados para acumular a água derretida que percola para o interior do ‘firn’ sempre que o gelo derrete à superfície”, explicou Horst Machguth, do Centro de Investigação Geológica da Dinamarca e da Gronelândia, ao jornal The Washington Post. Ao longo do tempo, a água derretida que escorreu para os poros pode ir para os aquíferos que existem na camada de gelo do firn ou pode voltar a congelar.
Até há pouco tempo, muitos cientistas assumiam que a maior parte desta camada ainda estava disponível para capturar água líquida. Mas o novo estudo mostrou que é provável que isso já não seja assim. Através de observações em 26 sítios na região Oeste da Gronelândia, os investigadores mostraram que formações recentes de densas camadas de gelo junto à superfície estão a dificultar a entrada de água líquida – o que faz com que esta seja forçada a escoar para o oceano.
“Os outros estudos defendiam que havia uma capacidade ilimitada de retenção de água naquele gelo, mas este novo estudo mostra que não é verdade”, disse Kurt Kjær, curador e investigador do Museu de História Natural da Dinamarca, que estudou as dinâmicas da camada de gelo na Gronelândia mas não esteve envolvido no novo trabalho.
Os cientistas examinaram amostras do gelo obtidas por perfuração naqueles locais da Gronelândia entre 2009 e 2015. A equipa procurou descobrir como é que uma série de Verões particularmente quentes, que causaram vários fenómenos de derretimento muito significativos em 2010 e 2012, afectou o firn.
Criadas “lentes de gelo”
“Acho que o resultado mais notável do nosso estudo é mostrar que aquela camada de gelo recente reage mais rapidamente do que o esperado ao aumento da temperatura atmosférica”, disse Horst Machguth. Ao analisar as amostras de gelo, os investigadores descobriram que o dilúvio de água derretida dos últimos anos escorreu para o gelo e congelou em camadas superficiais chamadas “lentes de gelo”. Estas lentes impedem que a água derretida escorra mais para baixo, o que significa que a água começa a acumular-se e a congelar logo junto da superfície, aumentando o número e a grossura de lentes de gelo num ciclo vicioso.
As amostras de gelo mostravam que as lentes de gelo ficaram rapidamente mais grossas entre 2009 e 2012, disse Machguth. Depois, a partir de 2012, ocorreu uma nova mudança. “No local onde estávamos, o derretimento muito intenso dos gelos que ocorreu no Verão de 2012 não resultou num aumento forte da camada de gelo no ‘firn’, porque já havia uma camada de gelo presente”, explicou o cientista. “Em vez disso, observámos que a camada de gelo obrigou a água derretida a escorrer pela superfície.”
Este fenómeno foi mais pronunciado nas zonas mais baixas do Oeste da Gronelândia, onde a água se infiltrou mais rapidamente nas camadas de gelo, e ficou lá acumulada na sua forma sólida. Mas Machguth e os seus colegas prevêem que o mesmo processo de formação de lentes de gelo irá ocorrer em locais cada vez a maior altitude – e a quantidade de água derretida forçada a escorrer para o oceano, não tendo onde infiltrar-se, irá também aumentar.
[Os peritos do Painel Internacional para as Alterações Climáticas das Nações Unidas estimam que até 2100 o derretimento de gelos em toda a Terra vá fazer aumentar o nível médio do mar entre 0,44 e 0,74 metros face ao período compreendido entre 1986 e 2005, no melhor e no pior cenário de emissões de gases com efeito de estufa. No ano 2500, esta amplitude entre o melhor e o pior cenário exacerba-se muito: é entre 0,5 metros, se os países controlarem a sério as emissões de dióxido de carbono e outros gases como o metano, e 6,6 metros, se as emissões continuarem descontroladas. Neste cálculo, conta também o derretimento dos glaciares que existem nos continentes e a grande massa de gelo que a Antárctica alberga.]
No caso da Gronelândia, a equipa do novo estudo não está só preocupada com a possível contribuição que este excesso de água vai ter no aumento do nível médio do mar – também sugere que o aumento de escoamento de gelo derretido possa provocar certos processos de reforço positivo que causem um derretimento ainda maior no futuro. Segundo o artigo científico, a água que vai escoando poderá esculpir canais na superfície da camada de gelo criando assim áreas lamacentas [mais escuras], o que poderá reduzir o albedo – a capacidade de a camada de gelo reflectir a luz solar. Por isso, com mais luz solar a ser absorvida pelo gelo, a temperatura à superfície poderá ficar ainda mais alta, acelerando o seu derretimento.
Além disso, estas mudanças no firn são em grande medida irreversíveis. Apesar de ser possível a formação de uma nova camada de gelo à medida que a neve vai caindo durante o Inverno e vai se acumulando à superfície na Gronelândia, o processo pode demorar décadas – e pode não acontecer de todo num clima cada vez mais quente.
Este estudo particular foi realizado apenas na região Oeste da Gronelândia, por isso os cientistas não têm a certeza se estes resultados reflectem o que está a acontecer em toda a ilha. Seria importante fazer as mesmas análises noutros locais, considerou Machguth.
Mas até lá, estas observações representam um importante passo na compreensão dos processos que afectam a Gronelândia, e podem ajudar os cientistas a melhorar as simulações utilizadas para prever o que irá acontecer no futuro àquela enorme massa de gelo. “Quando se obtém este tipo de informação, onde há um novo tipo de conhecimento, ela deverá ser integrada nos modelos”, defendeu, por sua vez, Kurt Kjær.
Exclusivo The Washington Post/PÚBLICO