Regresso à transição
Entendamo-nos. A história não se repete. Há momentos únicos na actividade humana, mesmo na política. Mas as eleições legislativas de ontem em Espanha revelaram um facto curioso. A tão criticada transição, que para os jovens eleitores equivale a passado por não ter havido reforma e regeneração, está
Há motivos para tanto. No final da década de 70 do século passado, um país que vivera pouco mais de 30 anos antes o mais dilacerante conflito de uma comunidade – uma guerra civil -, enterrou o conflito e pensou no futuro. Passou de uma ditadura para uma monarquia constitucional, com peculiaridades significativas: o monarca, pensado pelo ditador para perpetuar o poder nas mãos dos vencedores da guerra, é quem inicia o desmantelamento do regime; ficará também nos manuais que as Cortes franquistas fizeram um harakiri político, deixando passo à nova ordem.
A transição foi feita, pasme-se, da lei [franquista] para a lei [da monarquia constitucional]. Não houve ruptura, mas momentos de corte: a legalização do PCE na Páscoa de 1977, a libertação dos presos políticos, a liberdade de imprensa. Tudo pelo desejo imparável de uma sociedade civil, cujas aspirações políticas, económicas, sociais e ideológicas eram esmagadas pela velha ordem.
Foi essa mesma vontade da sociedade civil que se manifestou na última ida às urnas. O bipartidarismo colapsou e só uma impensável aliança entre conservadores e socialistas daria uma maioria aritmética mas não política, ao arrepio da paleta colorida e diversificada da actual democracia espanhola. O modelo bipolar falhou porque não fez reformas. Foi no imobilismo que residiu a sua resistência desde 1978. A corrupção foi o seu alimento.
Na transição, a vaga da sociedade civil encontrou na classe política os artífices da mudança. Foi trabalho operário, de abnegação, vontade e risco. De aproximação de contrários. Esta cumplicidade perdeu-se com a gestão política apoiada em maiorias absolutas ou apanhos de circunstância – maiorias relativas - com os nacionalistas catalães. Tudo isto ocorreu porque não houve reforma constitucional e a ousadia de desenhar um novo equilíbrio territorial.
Da última ida às urnas saiu um imbróglio. No entanto, com uma única leitura. Um lancinante apelo ao diálogo. Uma exigência de transparência. A reclamação aos políticos de retomarem o trabalho de artífice de que foram capazes há anos.
Se os partidos entrarem, apenas, na contabilização de perdas e danos, ganhos e acertos, não enveredam, só, numa aritmética que a honestidade política impede. Lançam o país num impasse que só favorecerá os que têm aparelhos e hábitos de poder.
Paradoxalmente, os que na sua radicalidade inicial – como Podemos – utilizaram sem escrúpulos a ausência de memória dos jovens da geração playstation e da maior precaridade laboral da história espanhola, têm de voltar à casa de partida. Ao espirito da transição, que tanto criticaram. Porque só assim será satisfeita a urgência de reformas.