Guiné-Bissau: as forças armadas e a luta política no contexto actual
Nós (homens e mulheres na política) não nos devemos intimidar com as opiniões políticas de um militar em activo, seja ele um general ou um simples soldado.
Não serei o primeiro a admiti-lo. Presenciar um desfile militar é sempre uma maravilha. Homens e mulheres sincronizados. Uniformizados. Alinhados. Bem trajados. Botas a brilhar. Boinas à medida de cada cabeça. Olhos fixos. Rostos sérios. Corpos em movimento, mas com as bandeiras bem firmes nas mãos. Os tais desfiles despertam em cada um de nós o nacionalismo, o patriotismo e o sentimento especial de pertença, uma identidade própria, dentro de um Estado ou uma nação.
A minha primeira experiência com um espectáculo idêntico foi logo após a independência, nas matas de uma tabanca recôndita da Guiné-Bissau, durante a cerimónia de apresentação das novas autoridades (do PAIGC) à população local. Bandeiras foram içadas aqui e acolá – com ou sem o hino nacional, assinalando-se assim a entrada triunfante do PAIGC no resto do território guineense. E o resto da história está registado na memória colectiva de guineenses e cabo-verdianos.
Neste ano em que as Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) completam sessenta anos de existência, é imperativo relembrar que a sua fundação se deveu ao I Congresso do PAIGC em Cassacá (Fevereiro de 1964) com o objectivo de reorganizar a luta armada, reestruturar e redistribuir as forças armadas. Dessa reorganização surgiu a Guerrilha, a Milícia Popular e o Exército Popular. Assim foi durante a maior parte do processo da luta de libertação nacional e até às reformas de 1971, quando o Exército e a Milícia populares foram integrados nas FARP.
O mais importante ainda é relembrar que a nossa luta – mesmo na sua forma “armada” e de uma guerra violenta – era fundamentalmente uma luta política. Aliás, nas suas infinitas alocuções, Amílcar Cabral defendia a necessidade de “combater a obsessão pelo militarismo" entre os seus camaradas do movimento de libertação. De uma forma mais clara e directa, Cabral afirmava que “cada tiro disparado” era “um acto político”. Ademais, Cabral dizia que os combatentes “eram militantes armados e não militares” para depois acrescentar que “qualquer combatente que não respeite o povo, que não defenda os interesses do povo, que tente usar a sua autoridade e as armas nas suas mãos para o benefício pessoal, não merece fazer parte das Forças Armadas". Daí o merecido nome: Forças Armadas Revolucionárias do Povo.
De facto, a guerra de libertação nacional (da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde) não foi apenas uma acção armada, mas sobretudo uma luta política, diplomática, social e cultural. As sensibilizações sociais e culturais deram alma, corpo, propósito e um sentido de missão aos militantes e combatentes de liberdade da pátria; as acções políticas mobilizaram, formaram, capacitaram e uniram homens e mulheres em torno de um ideal de luta para a libertação nacional; e as acções diplomáticas produziram solidariedades regionais e internacionais que resultaram em apoios financeiros e materiais, para além de ter proporcionado a formação “militante” de todos os combatentes de luta. Numa frase só, a independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde foi uma conquista política, militar, diplomática, social e cultural, tendo o povo como o denominador comum.
Numa altura em que celebramos o percurso histórico das FARP, gostaria de reafirmar que os Combatentes da Liberdade da Pátria merecem gratidão pelo sacrifício voluntário que garantiu a libertação dos dois povos, devolvendo-lhes a dignidade, o direito à liberdade e ao progresso e à paz. Mas, tirando um número ínfimo da elite militar guineense (já numa idade avançada), as forças armadas do país certamente remontam do período pós-independência. Todavia, no espírito de “continuidade”, a celebração do sexagésimo aniversário das FARP deve servir para reflectirmos sobre as formas de não só tentar salvaguardar a sua imagem e o seu “bom nome”, mas também e sobretudo de trabalhar para honrar as conquistas históricas dos povos combatentes da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.
Para começar, as FARP nunca devem cair na tentação de serem arrastadas para uma “ruptura” fictícia ou real com o resto da sociedade guineense, ou seja, o povo. E num espírito de um diálogo aberto, democrático e genuíno, hoje, nós (homens e mulheres na política) não nos devemos intimidar com as opiniões políticas de um militar em activo, seja ele um general ou um simples soldado. Antes pelo contrário, devemos incentivar a exteriorização dos sentimentos de cada um, mesmo quando vindos de uma pessoa como o general Biaguê Na N'Tan, o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas da Guiné-Bissau. Apesar do alerta de Cabral sobre os riscos de “militarismo”, nos tempos que passam e no espírito de inclusividade, não devemos estar obcecados com as tais exteriorizações vindas de qualquer elemento em uniforme militar. Ao mesmo tempo, não devemos minimizar a importância delas, sobretudo quando podem por em causa um eventual carácter republicano das forças de defesa e segurança.
Ontem, nas matas da Guiné, uma das grandes prioridades dos Comités Políticos das Forças Armadas era desenvolver trabalho político (sublinho, político) e conduzir frequentes reuniões políticas (sublinho, políticas) sob a liderança de comissários políticos com o objectivo de informar, formar e capacitar os antigos combatentes para os propósitos de luta e as expectativas da independência. Em tempos da democracia, a Guiné-Bissau deve continuar essa tradição de educação política no seio das FARP, para compreender mais e melhor o limite das suas funções e do seu juramento e “participar activamente nas tarefas da reconstrução nacional” (CRGB, art.º. 20, ponto 2).
Assim, a Guiné-Bissau precisa de um investimento sério na formação e capacitação política (combatente) de cada militar para que, colectivamente, estes sejam capazes de “salvaguardar, por todas as formas, as conquistas do povo e, em particular, a ordem democrática constitucionalmente instituída” (CRGB, art.º. 19, ponto 1). As armas, mesmo continuando sendo um dos símbolos da soberania nacional ao lado da bandeira e do hino, só devem sem empunhadas com a devida “prontidão combativa completa” para defender a integridade do território nacional. Sendo importantes membros da sociedade guineense, as nossas contemporâneas FARP devem estar empenhadas para combater pronta e patrioticamente – quiçá gradualmente – a indiferença, a insegurança, a ignorância, o obscurantismo, o medo e tantos outros “ismos” e cancros que têm assolado o país.
Sei que no passado dia 16 de Novembro de 2024, mais uma vez içámos a nossa bandeira e entoámos o nosso hino nacional. Mas, a nossa presente luta requer muito mais. Assim, recorrendo-se aos ensinamentos de Cabral no ano do seu primeiro centenário, diria que as nossas forças armadas não devem recear o povo. Juntos e em paz, ainda temos oportunidades para erguermos a nação sonhada por Cabral (e milhares doutros seus companheiros e combatentes), rumo ao progresso e bem-estar da população.