O risco da presidencialização do sistema de governo
Se Cavaco optar agora por presidencializar o sistema, será fácil gerarem-se ondas favoráveis à sua parlamentarização a breve prazo.
Um sistema semi-presidencialista como o português caracteriza-se pelo facto de três órgãos – Parlamento, governo e Presidente (PR) – deterem reais poderes políticos (ao contrário do que acontece nos sistemas parlamentar e presidencialista, em que apenas dois órgãos dispõem de poderes efectivos), uma vez que o PR, mesmo não sendo titular do executivo, desempenha importantes funções, que fazem com que não se reduza a uma mera figura simbólica, como acontece com os chefes de Estado dos sistemas parlamentares: veto, fiscalização da constitucionalidade, dissolução do Parlamento (quando não estiver garantido o regular funcionamento das instituições), nomeação do governo (tendo em conta os resultados das eleições legislativas e depois de ouvidos todos partidos), etc.
Porém, estes poderes presidenciais estão sempre em equilíbrio com os dos outros órgãos políticos e se, em períodos de acalmia da vida política, o pendor presidencialista do sistema tende a ficar atenuado, em alturas de turbulência, o presidencialismo sobressai. Aconteceu nomeadamente em 1985 e em 2004, quando Mário Soares e Jorge Sampaio, respectivamente, decidiram dissolver a Assembleia da República e marcar eleições legislativas antecipadas precisamente por considerarem que não estava assegurado o regular funcionamento das instituições. No entanto, a verdade é que estes momentos de presidencialização não se constituíram como verdadeiramente problemáticos, na medida em que os resultados das eleições legislativas subsequentes vieram mostrar que os Presidentes tinham feito uma leitura correcta dos sinais políticos. Daí que o sistema semi-presidencialista tenha continuado a ser considerado como adequado à realidade política nacional.
Porém, o actual momento político poderá criar fracturas sobre a natureza do sistema de governo. Depois das eleições legislativas de 4 de Outubro, o principal sinal de presidencialização do sistema foi o discurso em que Cavaco Silva não só se limitou a comunicar que indigitaria Passos Coelho como primeiro-ministro (decisão legítima, constitucional e previsível, dado o resultado eleitoral), como deixou claro não concordar com soluções de governo que se baseassem no apoio parlamentar do PCP e do BE, nomeadamente por estes partidos terem uma postura crítica face à NATO, ao Tratado Orçamental, etc. Neste caso, estamos perante um reforço dos poderes do PR num sentido bastante diferente daquele a que assistimos no passado. Desde logo, porque Cavaco assumiu poder vir a fazer uma leitura ideológica das soluções de governo que lhe forem apresentadas e decidir dar, ou não, posse a um governo por concordar, ou discordar, dos valores defendidos pelos partidos integrantes dessas soluções governativas. Ora, a Constituição não confere ao PR o poder de aceitar, ou recusar, um determinado executivo por este se aproximar muito, ou distanciar radicalmente, das suas próprias opções políticas. Se os eleitores portugueses concederam a determinados partidos os votos suficientes para que estes tenham força parlamentar para sustentar uma solução de governo, ao PR restar-lhe-ia aceitar o facto democrático. A sua avaliação ideológica destes partidos não pode pesar na decisão de empossamento de um governo – essa avaliação coube aos eleitores.
Se Cavaco optar por não dar posse a um governo do PS com o apoio parlamentar do PCP e do BE, caso os três partidos cheguem a acordo, estará a dar seguimento a esta tendência de presidencialização do sistema que se detectou no seu discurso. E este reforço do presidencialismo (e desprezo do pendor parlamentar) do nosso sistema, não só se basearia num juízo ideológico pessoal sobre dois partidos e não numa avaliação institucional como aconteceu no passado – o que não seria constitucionalmente admitido –, como viria ainda ferido de outros vícios. Por um lado, não estamos a meio de um mandato legislativo: as eleições realizaram-se há um mês, pelo que descartar um executivo de esquerda baseado nesse resultado eleitoral recente seria uma decisão pessoal do PR num sentido profundamente anti-democrático e anti-parlamentar.
Por outro lado, Cavaco Silva não pode recorrer ao mecanismo da dissolução da Assembleia e convocação de eleições antecipadas, pelo que a sua decisão de não dar posse ao segundo partido mais votado, se este dispuser de apoio parlamentar maioritário, iria conservar o actual governo em gestão. Com isto, mais do que causar incerteza nos mercados, ou prejudicar a imagem internacional do país, o PR estaria a manter, por opção pessoal, as instituições no mais irregular dos funcionamentos. Com esta demonstração do poder presidencial face ao poder do Parlamento, estaria a ir contra a Constituição, a trair a missão que lhe foi confiada e simultaneamente a inaugurar ondas de pensamento contra o sistema de governo semi-presidencialista, que tem gozado de um apoio consensual. Se Cavaco optar agora por presidencializar o sistema, será fácil gerarem-se ondas favoráveis à sua parlamentarização a breve prazo.
Politóloga, UBI e IPP TJ-CS