Como é que há tantos presos preventivos?
Há dias, o PÚBLICO citava o filósofo francês Albert Camus: “Se o homem falhar em conciliar a justiça e a liberdade, então falha em tudo.” Não há Justiça sem respeito pela dignidade do homem.
Quando o Estado decidiu prender preventivamente o ex-primeiro-ministro, fê-lo sem discrição no aeroporto de Lisboa. A detenção já integrava punição. Buscava o apoio da opinião pública ao processo. Aí se iniciou uma longa marcha acusatória. Noticiários e folhas de imprensa não se esqueceram de José Sócrates com a sua propensão para tudo e todos julgarem no imediato. Gerou-se um ambiente propício de culpabilidade. Promoveram-se os elementos das magistraturas mais envolvidos no caso, colocados no rol dos homens poderosos do país. O ex-governante foi acusado, julgado e condenado centenas e centenas de vezes por crimes muito graves: fraude fiscal agravada, corrupção, branqueamento. O Estado de Direito nem o acusou nem o julgou.
O processo tem anos. Não há uma acusação em forma. Documentada. Com o rol dos factos indiciados. Com provas que os demonstrem. Com a enumeração legal dos crimes supostamente cometidos. Isso é que é a acusação do Estado Democrático. Muito se joga nesse processo.
Esperava-se um procedimento que transmitisse uma certeza: investigava a verdade. No cumprimento das regras processuais. Nos prazos. No respeito rigoroso pelos direitos de defesa. Onde prevalecesse uma postura de atenção à dignidade da pessoa, de rejeição de condenações prévias. Que a Justiça permanecesse em sede própria. Sempre se tratava de um ex-primeiro-ministro!
O processo penal assenta em princípios constitucionais. Do direito/dever do Estado em punir delinquentes. Da defesa até ao limite de todos os cidadãos que caem nas redes do direito penal. A defesa implica o conhecimento da acusação.
Há cerca de 2300 presos em prisão preventiva.
Ignora-se a situação processual desses milhares de presos preventivos. O Estado acha bem! A percentagem é pequena em confronto com muitos outros países! O preso está encaixado numa folha de Excel.
Confrontamo-nos amiúde com a prisão preventiva. Agente escolar que molestou o aluno. Marido que maltratou a mulher. Peregrino detido na sua marcha religiosa por suspeita de fraude. Se ocorre uma detenção estrondosa em Lisboa, é sabido que, por coincidência, outra ocorrerá noutro local.
Os media pelam-se por retratar os temas ao pormenor. Alimentam consumidores ávidos de desgraças alheias. Depois é um manto de silêncio. Abandonam os temas como tudo o que o tempo absorve. Morreu. O Estado não informa ninguém. É o poder. A sua base instrutória é o comunicado lacónico. No interesse público ou no interesse do público. Ou garante do apoio do público ao processo.
Tudo é escrutinado nesta terra. O restaurante que se frequenta. As relações pessoais e até íntimas que se mantêm. Tudo é registado.
A pergunta é: como é que há tantos presos preventivos?
Que crime indiciariamente se cometeu? Indícios sólidos, não a olho. Que pressupostos concretos exigem prisão preventiva? Não o abstracto da lei. Que diligências de investigação se fizeram ou falta fazer? Ou o preso está ali a ser castigado, a ver se “dobra”? O processo há quantas semanas ou meses está parado à espera de vez? Ninguém sabe.
Preso preventivo deve esperar que o Estado tenha disponibilidade para o julgar. Esquecido do Estado e dos media. De todos. É um fora de lei na expressão de Michel Foulcault. A democracia tem muito a fazer nesse domínio.
Procurador-geral adjunto