Glockenwise: o negro assenta-lhes tão bem

Heat, o terceiro álbum dos Glockenwise mostra-os num novo espaço: a sofreguidão rock'n'roll anterior cobre-se de negro noite e a música transforma-se. São eles às voltas com dores de crescimento - que só lhes fizeram bem. Concertos de apresentação esta sexta e sábado, no Porto e em Lisboa

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Ao terceiro álbum, estão diferentes os Glockenwise, quarteto barcelense. São os mesmos, mas não exactamente

O preto e branco e o ambiente misterioso da capa dão o tom. Os quatro em sítio incerto, em noite incerta, perdidos do mundo na escuridão que os rodeia. Estão diferentes os Glockenwise, quarteto barcelense que, com Building Waves (2011) e Leeches (2013), com canções de um ímpeto rock’n’roll contagiante (tudo explicado nos dois minutos de “Time to go”) e com concertos que transportavam para palco essa energia deliciosamente (des)controlada, se tornaram uma das bandas mais interessantes e necessárias no panorama musical português. Heat, o terceiro álbum, chega para mostrar que assim continuarão. São os mesmos, mas não exactamente.

“Nós nunca fomos os filhos perfeitos de um qualquer nicho”, diz o vocalista e guitarrista Nuno Rodrigues. “Já com os outros álbuns não encaixávamos propriamente no perfil que seria esperado para uma banda garage rock ou punk. Sempre fomos apátridas dos nichos e isso, se calhar, intensifica-se neste disco, um amalgamar de outras experiências e sonoridades”. Heat, que será apresentado esta sexta-feira no Teatro Municipal Rivoli, no Porto (23h30, 5 euros), e sábado em Lisboa, na Galeria Zé dos Bois (22h, 6 euros, primeira parte de Vaiapraia), mantém a tónica na concisão (canções curtas e directas, sem desvios) e continua a mostrar o prazer que banda tem pela ideia de pop: as guitarras silvam e chocalham, mas há sempre uma melodia que sobressai, um refrão que assobiamos dia fora após a primeira audição – não é por acaso que Nuno Rodrigues assinou o ano passado, enquanto Duquesa, um álbum homónimo que é verdadeira preciosidade pop estival dedicada aos verões eternos da juventude.

O que acontece, então, em Heat? Uma banda que acelerava com sofreguidão pela rota do garage-rock para efusiva dança comunal, fazendo ponte entre os garageiros originais, os da década de 1960, e aqueles que descobrimos, por estes dias, entre a Atlanta dos Black Lips e a Austin de uns Strange Boys ou Harlem, refreou o ímpeto, meteu os ouvidos em negrumes de outras proveniências – o indie da década de 1980 ou o Bowie berlinense, dizemos nós, enquanto Nuno fala de uns “Smiths da Califórnia” -, procurou novos sons em órgãos vintage e na manipulação de ruído na produção e saiu das sessões de gravação nos estúdios Sá da Bandeira, no Porto, com nove canções imaculadamente Glockenwise (mas não como os conhecíamos).

Havia um plano para chegar até aqui mas, sendo os Glockenwise os Glockenwise, ou seja, uma banda que aprecia mais fazer que planear, o plano ganhou vida própria. E Nuno Rodrigues, o guitarrista Rafael Ferreira, o baixista Rui Fiusa e o baterista Cristiano Veloso seguiram-no, tão convictos quanto ignorantes em relação ao ponto de chegada. “Não há nenhum livro de regras que temos que seguir. Como tudo o que fazemos juntos é desorganizado e descomprometido, esta mudança de sonoridade não foi planeada. Essa continua a ser a maior piada da banda. Não fazemos nada de forma programada, fazemo-lo de forma intensa e desorganizada”. Daí que, por exemplo, entusiasmados com Heat, tema título e primeiro single do novo álbum, tenham procurado descobrir novas canções nessa veia. Falharam redondamente: em vez de novas “Heat”, chegaram (Not a) try hard e Lasting lies, new wave bem electrificada, gingona e com teclado esvoaçante para dar maior colorido à viagem. “Quando nos vocacionamos para determinada sonoridade, as coisas acabam sempre por descarrilar numa direcção completamente diferente”, confessa Nuno. Abençoado desgoverno, somos então obrigados a concluir.

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Problemas de primeiro mundo
Nuno Rodrigues fala-nos desde o Porto, a cidade onde vive hoje. “Estou aqui sem grande horário de trabalho, a tentar viver do meu ofício. É isso que tenho que me propor fazer”. Quando os Glockenwise nasceram, entusiasmados com aquilo que a pequena mais muito dinâmica comunidade musical barcelense começava a criar – olhavam para trás e viam os Astonishing Urbana Fall, olhavam para o lado e lá estavam os Green Machine que já não existiem ou os Black Bombaim que continuam a todo o vapor -, tinham um objectivo bem identificado e muito bem definido: a banda e o rock’n’roll da banda serviria para fugir à cidade, Barcelos, onde nada acontecia. Já saíram, já andaram a percorrer a Europa em digressão, já subiram e desceram o país uma série de vezes.

Cristiano Veloso e Rui Fiusa continuam em Barcelos, “o Rafa provavelmente está em Guimarães” e Nuno anda pelo Porto a tentar viver do artesanato de criar canções. Anda também às voltas com novas questões. Dores de crescimento, digamos. “Há bem pouco tempo, comecei a contemplar as coisas de uma maneira diferente, comecei a conseguir contemplar a minha própria mortalidade e a lidar com a ideia de que este tempo que está a passar é meu e está a ser-me roubado. Quando és mais novo, és eterno. Eu estou a perceber que não vou durar para sempre”. Aquilo que é Heat, álbum mais negro do que foi até agora habitual nos Glockenwise, álbum que, ainda assim, enquadra a meio da viagem, a encerrar o lado A da rodela, um épico de quase sete minutos chamado Time (is a drag), todo ele voragem eléctrica de guitarras em rédea livre, nasce muito daquele estado de espírito: o idílio juvenil já lá vai e os anos hão-de começar a pesar sobre o esqueleto.

“Não seria o mais correcto dizer que acabou o tempo daquela pujança de querer levar tudo à frente”, afirma Nuno Rodrigues. “É evidente que esse é um estado de espírito mais adolescente, mas temos sempre interesse em continuar a esticar as nossas próprias fronteiras e isso também é uma maneira de continuar a partir a louça toda”. Voltamos à capa e aos Glockenwise nela retratados num ermo não identificado. “A capa tem a particularidade de o sítio em que estamos desaparecer imediatamente no negrume. É nesse espaço mental e emocional que decorre o disco todo”. Pouco antes, referindo-se a “Heat” como um álbum de “geografia interior”, falava-nos de um disco “cheio de dúvidas e depressão”, falava-nos de Eyes, canção que nasceu da “ideia de falhanço e de contemplarmos o nosso próprio falhanço”. Diz isto, desenvolve a ideia, fala dos clássicos dos anos 1980 e da britpop em que andou mergulhado – “são gostos adquiridos, um pouco como fumar ou beber whisky, e os anos 1980 são agora o meu whisky” -, define-se como “uma pessoa com constantes depressões e dúvidas muito fortes” e, enquanto nós nos surpreendemos pelo contraste entre estas palavras e a sua presença em palco, enérgica e jovial, ele lança mão do humor para serenar as nossas preocupações. “A experiência humana é limitada e paralela. Tenho a certeza que todos nós nos poderemos identificar com os temas abordados no disco. Aquilo no fundo são problemas de primeiro mundo de jovens ocidentais, com a devida profundidade intelectual aplicada”, remata com uma gargalhada.

Pouco depois estará a citar Always look on the bright side of life, dos Monty Python, como canção que resume, em parte, a atitude dos Glockenwise perante o mundo que os rodeia e a carreira que vêm construindo. Dirá que é bastante ambicioso e que quer levar a sua banda o mais longe possível. Dirá que esse longe tem limites. “Não somos uma banda que imaginamos facilmente nos grandes palcos dos grandes festivais. O concerto não teria grande interesse. Perder-se-ia o contacto com o público, a proximidade, a própria sonoridade, que pede clubes fechados”.

Com Heat, os Glockenwise cresceram, ou melhor, expandiram. São os mesmos que tanto entusiasmo provocaram com o seu rock’n’roll directo e urgente, animado por um aguçado sentido pop. Mas chegaram a um sítio novo, pintado na escuridão com contornos indefinidos. Ouvido o álbum, torna-se claríssimo algo que desconhecíamos: o negro assenta-lhes mesmo bem.

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