Discurso de Cavaco Silva é politicamente controverso
Jorge Reis Novais e Tiago Duarte deixam claro que a decisão do Presidente é política e não tem problemas de constitucionalidade.
Jorge Reis Novais, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, especialista de Direito Constitucional e antigo assessor de Jorge Sampaio em Belém entre 1996 e 2006, e José Pires Tiago Duarte, professor de Direito Constitucional da Universidade Nova de Lisboa comentam, ao PÚBLICO, o discurso do Presidente da República. Não discordam sobre a indigitação de Passos Coelho como primeiro-ministro, mas divergem em relação ao sentido das considerações de Cavaco Silva sobre partidos não-europeístas, ou seja, do Bloco de Esquerda e do PCP.
Reis Novais: “O PR não tem que contestar as opções legítimas do povo”
“A meu ver, as considerações do Presidente da República são inoportunas, impróprias da função presidencial e podem ter consequências políticas de enorme perturbação no sistema político, o Presidente não tem que contestar as opções legítimas do povo português nas eleições, cabe agora aos deputados decidirem”, diz Reis Novais.
“Não há portugueses de primeira ou segunda, os partidos na Assembleia da República são todos democráticos, e o facto de haver formações que discordam da forma como a construção europeia foi conduzida ou como a união monetária foi construída é indiferente, desde que respeitem os vínculos assumidos pelo país, pelo que têm toda a legitimidade em participar em qualquer solução governativa”, destaca. Pelo que sentencia: “A discriminação que o Presidente fez, além de imprópria e perturbadora, é antidemocrática e desrespeita o voto dos portugueses”.
O especialista assinala, ainda, que na história constitucional portuguesa nada de semelhante tinha ocorrido. “Estes últimos anos foram um antimodelo da acção do Presidente da República e, quando o país precisa de governabilidade, o Presidente introduz instabilidade, crispação e inviabiliza os compromissos existentes ou do futuro”, sublinha. “Esperava a indigitação de Passos Coelho como primeiro-ministro, mas não esta dialéctica contra partidos e parte da sociedade portuguesa, pois a situação institucional criada após a inevitável rejeição deste Governo vai ser de uma completa confusão”, afirma.
Por fim, Reis Novais discorda que Cavaco Silva conhecesse todos os passos que ia fazer. “Diria, mesmo, que ainda hoje não tem nenhuma ideia do que vai fazer após a rejeição deste Governo”, conclui.
Tiago Duarte: “Ser Presidente de todos os portugueses não é ser neutro”
“O facto de o Presidente ser de todos os portugueses não quer dizer que seja neutro, se a maioria votou em Cavaco Silva foi para que ele decidisse num determinado sentido, é consequência da eleição directa, o Presidente representa todos os portugueses mas não foi eleito por todos os portugueses”, afirma Tiago Duarte. Daí que, “embora não esperasse este discurso, acho que metade do país o queria”. Classificando a intervenção presidencial de “desassombro, clara e clarificadora”, reconhece que “o Presidente nunca tinha feito até agora um discurso com uma clivagem tão grande”.
O especialista não vê óbices às considerações de Cavaco sobre os partidos que classificou como não-europeístas. “Quando descreveu as propostas do PCP e do BE, ninguém disse que não fosse verdade, a conclusão que tirou é que os partidos que têm esses programas não são capazes de governar o país de acordo com os compromissos internacionais”, analisa. Daí a disjuntiva: “Ou se alteram os compromissos ou mudam os programas eleitorais, mas o BE e o PCP tiveram um milhão de votos com os seus programas.”
No entanto, admite novidades, “como o BE e o PCP estarem dispostos a pôr na gaveta os seus programas e viabilizar um Governo do PS sem as suas bandeiras”. Seja como for, "o Presidente tem a capacidade de entender que não se dever formar um executivo com essas forças”, assinala.
Considerando óbvia a indigitação de Passos Coelho, Tiago Duarte coloca duas hipóteses para o futuro. “Manter o Governo [de Passos] em gestão, ou nomear um Governo do PS minoritário, sem o programa do acordo com o PCP e o BE, pois o Presidente não se manifestou contra o programa do PS ”, alvitra. Este último é um cenário teórico “No discurso, o Presidente responsabilizou os deputados do PS por não virem a viabilizar o executivo de Passos Coelho e penso que mantê-lo em gestão será a opção”, conclui.