Dar aulas

E eventualmente ver o momento a acontecer: nos olhos da Carina ou do Bruno ou da Débora, o momento em que a ficha cai e o sossegado mecanismo se vê obrigado a mexer, e eles sem saberem nem como nem porquê se descobrem modificados por alguma coisa que o ‘stor’ disse

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jarmoluk/Pixabay

Entra-se na escola com um aceno ao maduro do portão, outro (só cabeça, meio-sorriso) à contínua da entrada. Um “bom-dia minhas senhoras” às simpáticas da secretaria, caminho da máquina de café da sala dos professores. Toque-toque na máquina a ver se cospe a magia sem muito chavasco, desfolhada rápida ao jornal abandonado, espreitadela ao horário para descobrir que sala e que turma nos esperam. Gorgolejar de corredor, já estamos de intervalo.

Entram os colegas que fizeram o tempo anterior, bons-dias sentados à volta da mesa grande, primeiro momento de “o raça dos putos estão cada vez piores”, rimo-nos, queixamo-nos, preocupamo-nos com o doente, o acidentado, o que anda a dar no fumo ou pior, juntamos os papéis, afivelamos o ar sério, saímos para o corredor apinhado de adolescentes.

Furamos por entre os penteadinhos da moda, as tatuagens, as “nails”, a roupinha que vai ser extremamente cómica nas fotografias daqui a vinte anos, a energia ligeiramente histérica dos demasiado novos “Bom dia stor, bom dia stor, bom dia stor” sim pois pois sim. Apanhar o livro de ponto, descobrir a sala, fazer entrar a maltinha, esperar que eles se sentem, que eles se acalmem.

Fazer um olhar calmo (quase frio) até que eles sosseguem, perguntar “onde ficámos?” para ouvir sempre as mesmas duas da primeira fila (com impecáveis caligrafias redondinhas) repetir a última frase da última aula, recapitular; recapitular por outras palavras (só para acordar a primeira fila), mandar calar os turras, avançar devagarinho com “a matéria”.

Falar, falar, falar, olhar para os papéis que deram muito mais trabalho a escrever do que dão a dizer, falar mais, falar muito, falar sempre; perceber os que estão a apanhar e os que estão a adormecer só pelo olhar. Escrever os nomes dos autores e das palavras que eles claramente não conhecem no quadro, abrandar para poderem tirar notas, meter a anedota pessoal para se lembrarem melhor, semear a bibliografia aqui e ali, parar sempre que um fica com cara de boi a olhar para o palácio, puxar as rédeas rente quando se animam demasiado.

Subir e descer lento por entre as carteiras para manter a malta cá, usar os nomes dos piores nos exemplos para os puxar para o que está a acontecer, gerir a sala, esperar pelo momento, o momento que acontece só muito de vez em quando, o momento que vemos logo e que justifica tudo o resto.

Lembrarmo-nos de como é ser pequeno, de como ser ignorante é diferente de ser burro, semear semear semear. Esburacar-lhes as certezas e dizer alto “Atenção! Tomem nota!”, acordá-los. Reprimir o “raio dos putos não sabem nada!”, não é suposto saberem, o trabalho é isso! Esperar pelo momento, o momento do gostinho especial (que não é todos os dias, nem todas as semanas sequer, mas que acaba por vir sempre).

Chamar-lhes a atenção para os pés do Gene Kelly e para as mãos da Maria João Pires, para os caracteres regressivos e para a noção de cidadania no Robespierre, para a relatividade cultural e para como cortamos o ar com a mão fora dum carro em andamento, para as sandes atiradas aos refugiados (não confundir com "imigrantes") e para os filhos duma meretriz do Mário Zambujal, a condensação nas janelas frias e o Marx e o Freud e o Clastres e a crónica fajutice das estatísticas eleitorais, o permanente peso das palavras e a dureza do trabalho infantil durante a primeira fase da revolução industrial e o princípio da não-locupletação e mostrar-lhes outra vez (e outra e outra e outra vez) como vimos à escola não para ter respostas mas sim para descobrir as perguntas que têm de ser feitas... e esperar o momento, esperar sempre pelo momento.

E eventualmente ver o momento a acontecer: nos olhos da Carina ou do Bruno ou da Débora, o momento em que a ficha cai e o sossegado mecanismo se vê obrigado a mexer, e eles sem saberem nem como nem porquê se descobrem modificados por alguma coisa que o ‘stor’ disse (como é que ele se chamava? qual era a cadeira?)... E o nosso esforço justificado.

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