Combates políticos, lutas pessoais

A turbulência dos anos finais da monarquia vista por um escritor de acção comprometido com a causa republicana: Manuel Laranjeira

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Os artigos de Manuel Laranjeira impressionam pela frontalidade e pelo facto de neles se chamarem os bois pelos nomes

Por um lado, era o Portugal das “levas e levas de esfomeados”, dos que se viam obrigados a emigrar porque “se não resignaram a morrer exaustos, secos, contra o chão ingrato da sua terra”; considerados como “ignorantes e incultos”, contrastavam com “as quadrilhas parasitárias que medram na política nacional” (p. 57). Quadrilhas dissociadas do povo e dos seus interesses, a que se tinham vindo juntar os brasileiros enriquecidos, satirizados por Camilo, que, uma vez regressados à pátria — em lugar de se envolverem em investimentos produtivos e de contribuir para a instrução do povo —, apenas subsidiavam irmandades e confrarias religiosas ou fundavam “serralhos aldeãos com a virgindade barata e duvidosa de algumas hetairas de pernas sujas” (p. 93).

Por outro lado, a sociedade portuguesa estava sujeita à lei do progresso ou da regressão. Por exemplo, a jornada de 5 de Abril, com as suas formas de repressão sangrenta, em resposta ao regicídio de 1 de Fevereiro de 1908, representava uma regressão. Mas havia razões para acreditar no progresso e na capacidade de, através da vontade humana, se romper com o fatalismo dos organismos sociais, que se reproduziam nas suas hierarquias de pobres e ricos, de oprimidos e de classes parasitárias. Tudo isto porque era inevitável “o advento das classes médias” (p. 77). Mais: Manuel Laranjeira pensava que a revolução estava à vista porque as classes médias “hão-de dominar ou ser esmagadas pelas quadrilhas oligárquicas e parasitárias que nos devoram o sangue e a honra”; estando a elas “subordinados os interesses das classes trabalhadoras, isto é, da massa comum da sociedade portuguesa” (p. 78).

Laranjeira lutou com a sua pena para criar as condições que vieram a resultar no 5 de Outubro de 1910. Irado, sem papas na língua, gritou contra os monárquicos seus inimigos: “Ao nosso desejo de paz respondem com a agressão (...), expomos-lhes razões, respondem-nos a tiro” (p. 80). Denunciou os adiantamentos ilegais à casa real e o modo como os dinheiros da nação apenas saciavam a “voracidade de certas quadrilhas políticas” (id.). Mas, enquanto escritor de acção, também combateu o modo como funcionava o mundo universitário. Foi em 1909 que irrompeu contra a Escola Médico-Cirúrgica do Porto que, como dizia um ilustre professor seu amigo, não era “um estabelecimento para ensinar medicina, [mas] uma manjedoira para parentes e amigos” (p. 120). A partir de uma descrição das tropelias que se faziam nos concursos para admissão de professores e de progressão nas carreiras, denunciava a falta de sentido público e a cobardia de muitos que consentiam com uma situação em que o clientelismo e o menosprezo pelo reconhecimento dos que faziam ciência eram notórios. No fundo, argumentava, a Escola não passava de “uma récita de amadores, em família, com o sr. Almeida Brandão, de contra-regra, a puxar os cordelinhos” (id.). Era este último que controlava os júris, actuando como um “cacique” que chefiava uma “coterie”, ou seja, uma “quadrilha” (p. 123)! Para se chegar a professor universitário, só havia um meio: subir “pela escada de um corrilho, correntemente denominado a panelinha do Laranjal, que até o confessam os próprios naturalmente interessados em encobri-lo e dissimulá-lo” (p. 136).

Como articular todos estes combates políticos e académicos — que impressionam pela sua frontalidade e pelo facto de neles se chamarem os bois pelos nomes — com o plano das confissões pessoais, das asfixias e dos pessimismos de Laranjeira? A questão é mais do que discutível, quando se sabe do final trágico que o autor teve. Neste ponto em particular, é grande o risco de querer encontrar nesse mesmo plano, mais íntimo, uma interpretação coerente que possa explicar os caminhos que o levaram ao suicídio, tal como se se tratasse de uma inevitabilidade. Claro que, num dos textos de 1902 reunidos neste livro, dedicado ao escultor Augusto Santo, fala-se do descontentamento deste e da asfixia do seu talento. Acrescentando, “duvidar de si, dos seus pujantíssimos recursos de artista nunca ele duvidou. Nesse dia ter-se-ia suicidado” (p. 153).

Enfim, a publicação deste conjunto de textos que andavam dispersos por jornais pode ser considerada um bom serviço para uma história intelectual do princípio do século. Claro que o leitor gostaria que a introdução explicasse melhor qual o lugar de Manuel Laranjeira nas lutas políticas, académicas e literárias que envolveram muitos outros jornalistas. Por exemplo, como situar Laranjeira em relação a um publicista como Silva Pinto? Também este se mostrou activo nos jornais e em livros, tendo emprestado a sua voz ao combate dos famélicos e oprimidos, ao mesmo tempo que pôs em causa os projectos coloniais baseados na exploração do trabalho escravo em África. Por último, seria também importante que recolhas como esta, assumidamente modestas, não prescindissem de índices, onomástico e temático, rompendo com a tradição portuguesa de publicar à pressa.

 

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