Até os bonecos falam durante o sexo

Técnica de animação stop motion ao serviço do existencialismo de Charlie Kaufman. Anomalisa com bonecos, sem adereços de excentricidade.

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Anomalisa, de Charlie Kaufman (também argumentista) e Duke Johnson dr
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Os realizadores Duke Johnson (à direita) e Charlie Kaufman na apresentação de Anomalisa em Veneza REUTERS/Stefano Rellandini
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Os realizadores Duke Johnson e Charlie Kaufman ao lado dos actores Jennifer Jason Leigh e Tom Noonan REUTERS/Stefano Rellandini

É agora um filme de animação, técnica stop motion, com os mesmos actores a fazerem as vozes. David e Jennifer voltam às suas duas personagens: ele é Michael Stone, inspira multidões com best-sellers sobre a satisfação dos clientes em serviços prestados, mas não está satisfeito com a vida, e ela é Lisa, que ele encontra num fim-de-semana num hotel em Cincinatti, rapariga tímida, a engordar, sem auto-estima.

Tom Noonan faz a voz de todas as outras personagens, independentemente da idade e do género, porque todos os bonecos são iguais – todas as pessoas parecem iguais a Michael. Só a voz de Lisa, afinal, é diferente... na perspectiva de Michael. Por isso ela vai ser a anomalia na sua vida nesse fim-de-semana... Anomalia, Anomalisa.
Como é um filme de Charlie Kaufman (Queres ser John Malkovich; Inadaptado), a voz de Lisa há-de começar a parecer-se com todas as outras. O pessimismo na existência de Michael é o rosto do seu narcisismo: a cabeça dele projecta toda a sua monotonia.

É um filme de Charlie Kaufman, que continua a escusar-se a falar sobre os filmes sempre que sente que estão a pedir-lhe que os explique. Mas por mais excêntrica que possa aparentar a postura, este é o menos anómalo dos seus filmes: um pedaço de intimidade que não se apoia em excentricidade alguma, sem adereços, descarnadamente humana.

É a rarefacção de um universo, está para os outros filmes de Kaufman como o Fantastic Mr Fox para os de Wes Anderson: uma possibilidade de reiteração temática, sim, mas sem manobras de diversão, um verdadeiro reencontro com o núcleo de uma obra.

Bonecos? Até eles falam durante o sexo. Anomalisa, o filme, amplifica o efeito de intimidade pretendido pela “peça sonora” que Kaufman escreveu para o palco. Jennifer Jason Leigh comparava as experiências, referindo-se, por exemplo, à cena de sexo entre as personagens de Michael e Lisa: foi mais intensa, contou, os dois actores no escuro a falarem, a gravarem os diálogos, e sem se tocarem. Essa impossibilidade de toque funcionou para eles como a ausência de figuração humana funciona para o espectador: potencia a experiência, câmara de eco onde nos sentimos.
 
Hermanus, Alper e Bellochio
É o que falha redondamente em The Endless River, de Oliver Hermanus (concurso): fazer o espectador reencontrar-se com as emoções e personagens que possam existir para lá das intensões visuais e formais que se publicitam – o genérico do filme é uma promessa, algo desajustada e que cedo começa a ser desconfortável, de bigger than life, como nos clássicos de Hollywood, mas depois nem sequer há vida nesta história sul-africana em que a violência social não tem fim.

O turco Emin Alper, em Frenzy (concurso), constrói a paranóia para as suas personagens, dois irmãos que viveram distanciados e que procuram aproximar-se. É uma irreconhecível Istambul, um “lugar” sem tempo preciso, criado pela alienação das personagens, pela desconfiança e pelo medo – a “Turquia de ontem, de hoje e esperemos que não seja a Turquia do futuro”, dizia o realizador. É um filme onde voltam a aparecer muitos cães, depois do Sivas, de Kaan Müjdeci, visto o ano passado aqui em Veneza, mas não podia ser mais contrastante a forma como Emin Alper mete pelos olhos adentro do espectador o “cinema” para ele “sentir”, enquanto Müjdeci parecia ir ao seu encontro.

Foi o reencontro de Marco Bellochio com uma antiga prisão, onde uma freira foi emparedada viva no século XVII, que fez nascer Sangue del Mio Sangue (concurso). Aquela é apenas a primeira parte do filme, porque a segunda é o regresso ao mesmo lugar mas na actualidade. Bellochio diz que se está nas tintas para justificar esse movimento, e é saudável essa energia libertária. Que se sente no filme, até num certo burlesco desesperado – e completamente desagregado, informe – que “recebe” esta Itália contemporânea.

Mas é como se tivéssemos dois contos, de intensidades diferentes e sem se ajudarem mutuamente, parecendo sempre a segunda parte uma adenda desnecessária. Desconfiamos que para se experimentar o lirismo áspero e livre do “racconto” vai ser preciso esperar pelos 11 minutos na vida de um grupo de personagens, 11 Minutes, do muitas vezes soberbo Jerzy Skolimowski que passará também no concurso.

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