Gabriel Mascaro excita Festival de Veneza (e não é só a cena de sexo)
Um mundo de possibilidades e a impossibilidade de aprisionar esse mundo: é essa a potente sensualidade de Boi Neon, do brasileiro Gabriel Mascaro, passado no ambiente dos rodeos do Nordeste brasileiro.
A cena de sexo de que se fala - entre um viril vaqueiro que aspira a ser designer de moda (Juliano Cazarré, intérprete de Tropa de Elite), e uma segurança de fábrica, grávida, que vende perfumes - é um aqueles pedaços de cinema que não se saberá se é verité ou se tem prótese, mas não é a curiosidade do “como fizeram” que aguça, não, nada disso, é o prazer, das personagens e talvez dos actores, que extasia. É o prazer, fundamentalmente: nesse momento de Boi Neon, que acontece mais para o final, torna-se fulminante que o prazer, de descobrir os corpos como coisa a acontecer e ainda sem estereótipos que fixam e aprisionam, é na verdade, se for possível sintetizar desta forma, o projecto de Mascaro, cineasta e artista visual do Recife – é a sua segunda ficção, ele que começou no documentário, depois de Ventos de Agosto (2014).
O cenário de Boi Neon são as Vaquejadas, misto de rodeo, feira agrícola – a lama, o esterco –, desporto e espectáculo de electrónica e forró – o néon – que, segundo o realizador, é tão popular no Nordeste brasileiro como o futebol. Com uma delicadeza enorme em observar o espectáculo da matéria humana e orgânica em movimento, Mascaro criou uma ficção, baseada em pesquisas que fez na paisagem social nordestina, que evita interferências e ruídos. Neste sentido: ela não viola os segredos dos corpos, os silêncios com que eloquentemente podem falar, não os aprisiona numa identidade pronta a descodificar. Numa entrevista, Mascaro disse que lhe interessou quebrar com o estereótipo de um Brasil rural mágico, primitivo, que é uma paisagem pronta a consumir, e dessa forma renovar o entendimento e conhecimento de uma realidade que está em mutação, económica, social, culturalmente. Onde tudo se afigura novo, à espera de ser interceptado, com outras possibilidades que desestabilizam os clichés.
É que se temos perante nós uma “família”, nunca estamos seguros da função que cada um dos elementos desempenha no grupo – nem seremos capazes de integrar os afectos que os ligam num papel ou numa função sequer. São trabalhadores de um patrão nomeado mas sempre ausente, isso sabemos. Deslocam-se de camião para os rodeos e é dentro dele que vivem: a camionista, a filha, que procura um pai, o vaqueiro que tem força para agarrar os touros e mãos delicadas para os tecidos (quer ser fashion designer, mas para já “veste” os desejos da camionista, que se transfigura como vedeta de espectáculos nocturnos no sertão), e quem mais vier a entrar na intimidade do camião - como aquele outro vaqueiro obcecado com o paciente desfrisar dos seus cabelos compridos.
É este mundo de possibilidades, e a impossibilidade de aprisionar este mundo, que moldam a potente sensualidade deste filme. Palmas na sessão de gala, com a presença do realizador e dos seus intérpretes, mas também apupos. O espanto, que é mudo, algumas vezes defende-se com vaias.