Lisboa em 1514

Em 1514, Jan Taccoen van Zillebeke passou por Lisboa a caminho de Jerusalém...

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Uma fonte importante para questionar a configuração da cidade de Lisboa, em inícios do século XVI

A primeira característica da cidade diz respeito à sua dimensão: tão grande quanto Bruges, mas sem a mesma beleza. Anotação acompanhada da construção em altura, onde viviam três ou quatro famílias, umas sobre as outras. O tema será recorrente e Van Zillebeke volta a mostrar, noutro lugar, a sua admiração pelo grande número de casas em construção, sinal de uma mudança e de afirmação da riqueza e poder da cidade. Quanto à composição da mesma população em abundância, dividia-se em: cristãos; judeus tornados cristãos, com o seu enorme poder sobre o rei e a cidade; mouros e infiéis oriundos das conquistas, tanto brancos como negros. Estes últimos suscitaram particular impressão no visitante flamengo, sobretudo os que eram transportados na parte de baixo dos navios e vendidos como escravos. Num deles, Van Zillebeke contou cerca de 300, todos nus, que comeram ajoelhados, com as mãos, a partir de pratos que também serviram para beberem água doce, como se fossem animais. Depois, foram examinados, pela sua compleição física, vendidos a quem mais desse e, só depois, cobertos com um pano à volta da cintura. Tanto ou mais espaço do que aos escravos saídos dos navios e transaccionados no mercado, é atribuído na descrição a três jovens elefantes, sobretudo, às suas proezas físicas.

Seguindo a mesma ordem, atenta à religião e à presença de grupos como o dos escravos, Van Zillebeke refere uma série de igrejas e irmandades, dedicando particular atenção às festas e procissões. O momento da visita era propício, pois coincidia com a Páscoa. Particular impressão provocou o espectáculo da auto-flagelação praticado na véspera de Quinta Feira Santa por cerca de uma centena de irmãos da Misericórdia, embuçados, mas com as costas e o peito a descoberto. Salta-se, depois, para uma referência aos espectáculos de execução por adultério e para uma alusão às grandes riquezas distribuídas em esmolas pelos mesmos irmãos, cujos rendimentos provinham dos testamentos dos mais ricos mercadores. E, no decurso da descrição, o autor nota que as igrejas lisboetas, a começar pela Sé – onde reparou no belo túmulo dourado com o corpo de São Vicente, bem como na capela dedicada a S. António de Pádua – , eram muito inferiores às da Flandres.

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Os homens honrados andavam em cima de mulas, com as suas longas capas. As damas vestiam vários tipos de vestidos de pano ou gibões de mangas largas, com muitas pregas. Ambos os géneros usavam cadeias de ouro e prata, mais concretamente, as mulheres enchiam-se de pulseiras e anéis, mas nada disto se via por andarem cobertas com mantilhas até à cabeça. Aos sinais de distinção por via do vestuário e dos objectos em ouro e prata, somavam-se os sinais de riqueza das suas casas, recheadas de louças e tapeçarias, fazendo os que podiam gala nisso. Tudo tinha mudado nos últimos trinta ou quarenta anos, correspondendo à permanência da corte em Lisboa, pois “o rei fez nela um belo e rico palácio novo, onde agora vive, junto ao rio, que é o porto”; e os judeus convertidos ao cristianismo desenvolveram uma grande actividade comercial, tendo passado a mandar no rei e na cidade. Em correspondência com todos esses atributos de riqueza – a começar pelo já referido número de novas casas em construção – havia um novo hospital que estava em construção, o Hospital de Todos os Santos, e, perto dele, um mosteiro dominicano, onde a irmandade dos flamengos tinha uma rica capela, coberta de tapeçarias e dispondo de jóias e ricos ornamentos.

Se os sinais de uma crescente riqueza parecem ser as marcas dos novos tempos da cidade de Lisboa, as marcas do exercício do poder estão bem presentes no facto de a mesma surgir como capital de um império – urbs caput mundi. Duas marcas, de diferente natureza, são aqui dignas de nota: por um lado, a cidade concentra em si um enorme poder militar que dela sai para as conquistas; por outro lado, a cidade exibe os mais diferentes traços de um exotismo recolhido “nos países conquistados pelo rei”. A referência à conquista de Azamor, realizada em 1513, serve de pretexto a Van Zillebeke para mencionar as permanentes guerras e conquistas em que o rei andava envolvido, bem como o facto de estar o reino “cheio de tropa e artilharia”. Por sua vez, a vinda a Lisboa de três personagens de Calecute, com o objectivo de se fazerem cristãos e serem baptizados, introduz evidentes sinais do exotismo da “gente estranha”, pois os mesmos “tinham nas faces muitas pedras, assim como no queixo, e na boca, sobre os lábios, dois dentes compridos de pedras preciosas”.

A descrição inclui, ainda, um breve inventário dos usos e costumes portugueses, tanto do ponto de vista público, como privado. Na perspectiva do viajante flamengo o que era diferente, causava maior impressão. Assim acontecia com as muralhas da cidade que não fechavam as suas portas, não havendo sequer fechaduras, nem ninguém que delas se ocupasse; isto, apesar de ser notório o poder militar que a cidade concentrava e do reino estar em guerra permanente. À notada ausência de uma delimitação que protegesse a cidade, acrescia o facto de o rei comer em público no seu palácio, “com as portas da sua sala abertas”, rodeado de “todo o tipo de pessoas à volta da mesa e nada fazem para as afastar”. Como interpretar o espanto pela proximidade do rei relativamente aos que o rodeavam? Não seria ele o mero resultado de quem, habituado às distâncias cerimoniais da Borgonha, se impressionava com tanta proximidade?

O certo é que a mesma estranheza também se pressente no modo de Van Zillebeke descreve a nova forca, que tinha sido recentemente construída junto ao porto e ao cruzeiro, não longe do palácio do rei. Enquanto permanecera em Lisboa, o autor da descrição soubera que ali tinham sido enforcadas duas mulheres adúlteras e os seus maridos. Ficando o leitor sem saber o que mais espantara o visitante: se tinha sido o rigor da pena, para um pecado que não obrigaria a tal pena, se o modo do enforcamento, uma vez que os cadáveres pendurados a dois pés do chão, com um pequeno pote na mão, onde as pessoas iam dar uma esmola e “beijar-lhes a mão”.

Finalmente, há espaço para o registo de outros costumes, submetidos a uma lógica próxima da administração dos sacramentos católicos. Os casamentos, por exemplo, faziam-se com frugalidade e sem pompa: os convidados acompanhavam os noivos à igreja e o padre cura administrava o sacramento, despedindo-se logo de imediato todos, sem fazer “outros dispêndios com jantar, danças, enfeites ou roupas”. Depois, havia que reparar na organização espacial da casa: os quintais ficavam da parte de trás das casas e estábulos, talvez a contrastar com hábitos flamengos de ter os quintais na parte de frente das casas. Não havia chaminés para cozinhar, nem retretes próprias – à excepção de uns cem buracos existentes na Ribeira – , competindo aos escravos levar à cabeça os dejectos para serem lançados ao Tejo. Finalmente, Van Zillebeke constatou o que para ele seria uma outra bizarria dos países do sul da Europa, pois “quando morre alguém fazem uma grande gritaria, como em Roma”.

A descrição, mais ou menos idealizada, de cidades e de países impôs-se e difundiu-se na Europa, desde o Renascimento italiano. Inspirada nas tipologias de Aristóteles e Vitrúvio, bem como na geografia de Ptolomeu, tais descrições obedeciam a preocupações tanto acerca das múltiplas funções assumidas pelas cidades, como em relação às suas novas preocupações estéticas pela forma. Os usos de tais tipologias e dessa mesma arte de descrever cidades foram também sujeitos às preocupações mais individualizadas de viajantes interessados em escrever, sobretudo para os seus próprios conterrâneos, acerca de terras longínquas. Entre 1494 e 1495, o alemão Jerónimo Münzer, oriundo da Morávia, e em 1504 o veneziano Lunardo da Cà Masser visitaram Lisboa e deixaram, nos seus relatos de viagem, as suas descrições de Lisboa, cujos significados podem ser melhor apurados em comparação com o testemunho deixado por Van Zillebeke em 1514.

Entre os aspectos comuns às três descrições em causa, o destaque vai para a importância assumida pelo Império, nomeadamente pelas viagens da Carreira da Índia. No relato da viagem de Münzer são as plantas e animais (crocodilos e leões) que pertencem a uma série que também inclui um mapa mundi, muito bem pintado e com diâmetro de catorze palmos, sem esquecer a referência à já referida Casa da Mina e ao ouro proveniente da Etiópia. Cà Masser fala das armadas da Índia e é por elas que termina a sua descrição de Portugal: por um lado, elas obrigavam a constantes importações por via da Flandres, incluindo de madeira destinada à construção de navios; por outro lado, apesar de corresponderem a uma ausência de razão mercantil, as mesmas viagens já tinham conduzido ao enriquecimento de pelo menos vinte capitães nelas envolvidos. Por último, na descrição de Van Zillebeke, os sinais do império surgem tanto pela chegada ao porto dos navios carregados de escravos e mercadorias, nomeadamente de especiarias; como da partida de armadas para as conquistas, como por exemplo de Azamor; e, ainda, pela alusão aos elefantes que passeavam pelas ruas e faziam reverências ao rei, bem como de gente estranha tal como os homens vindos de Calecute.

Pela mesma altura, outros viajantes ou estrangeiros que habitavam Lisboa também se mostraram interessados em enviar para as suas terras notícias do que se passava nas longínquas terras das conquistas. Valentim Fernandes, por exemplo, não deixou de mostrar o seu cepticismo e as suas críticas em relação ao próprio processo de expansão imperial. Assim, a propósito da imposição de tributo a Ormuz, no Golfo Pérsico, por parte de Afonso de Albuquerque, deu a entender que os portugueses, “iguais às outras nações, abusam quando são vitoriosos, querendo as mulheres daquela gente, incendiando e praticando outras coisas escandalosas, e como o Afonso é também um homem severo, tendo causado muito desgosto a vários capitães das naus, três deles abandonaram-no com as suas naus, seguindo para Cochim”. De igual modo, em Roma, na Primavera de 1514, na altura da célebre embaixada de Tristão da Cunha, a representação da comédia Trophea de Torres Naharro também representou uma outra forma de sublinhar os feitos da conquista e da expansão imperial dos portugueses no Índico .

A edição parcial da descrição de Van Zillebeke, com base no manuscrito da Biblioteca Municipal de Douai, antecedida por três estudos introdutórios, constitui-se numa fonte importante para pensar as relações de Portugal com a Flandres e questionar a configuração da cidade de Lisboa, em inícios do século XVI. O estudo de Eddy Stols sumaria muitos dos dados novos acerca dessas relações, embora se lhe possa apontar três lacunas importantes, a saber, os estudos clássicos de Joaquim de Carvalho (1877, 1929), Anselmo Braamcamp Freire (1920) e A. H. De Oliveira Marques (1959, 1962) que sobre elas incidiram. A comparação com outras descrições quinhentistas também é omitida do mesmo conjunto de estudos. No entanto, trata-se de uma edição com rigor filológico e analítico que deverá servir de exemplo e incentivo à publicação de outras fontes primárias.

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