“Montar a cavalgada das Valquírias foi como montar um documentário”

Walter Murch, montador de Apocalypse Now, recebeu no Festival de Locarno uma distinção de carreira. Explicou que a tecnologia pode ter mudado, mas a técnica da montagem mantém-se a mesma.

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Com Francis Coppola, na rodagem de Apocalypse Now
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Walter Murch e o seu prémio © Festival del film Locarno / Marco Abram
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Walter Murch, com o seu ar de cavalheiro nova-iorquino de outras eras, aparentando menos idade que os seus 72 anos
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O Vigilante, filme onde o som é central: Murch explica ter tido toda a liberdade para montar enquanto Francis Ford Coppola entrava em rodagem de O Padrinho Parte II

Ainda o “cinema digital” era um sonho na cabeça de Francis Ford Coppola, ainda o filme tinha de ser cortado e colado em película nesses tempos “heróicos” em que a geração da “nova Hollywood”, para o bem e para o mal, mudou o curso do cinema americano.

Walter Murch, no entanto, manteve-se sempre por trás da câmara, como sonoplasta e montador, por vezes também como co-argumentista ou “ouvido atento”. Colega de Coppola e George Lucas na escola de cinema, co-escreveu a primeira longa de Lucas, THX-1138, trabalhou no som de American Graffiti, O Vigilante e O Padrinho Parte II, e montou Apocalypse Now e O Paciente Inglês (vencendo os Óscares de montagem por ambos), para lá de ser um dos mais aclamados teóricos da montagem. O nova-iorquino está em Locarno para receber o prémio de prestígio Vision, atribuído pelo festival desde 2013 a figuras cujo trabalho “nos bastidores” tem tido um impacto incalculável nos avanços tecnológicos, mesmo que invisível para o grande público; antes dele, o galardão coube ao pioneiro dos efeitos especiais Douglas Trumbull (2001: Odisseia no Espaço, Encontros Imediatos do Terceiro Grau) e a Garrett Brown, o inventor da steadycam.

O galardão é acompanhado por um pequeno ciclo de filmes onde colaborou – Apocalypse Now, claro, mas também A Sede do Mal de Orson Welles, em cujo restauro trabalhou; o documentário de Mark Levinson sobre o laboratório suíço CERN, Particle Fever, onde foi montador; e a única longa que realizou, O Mundo Fantástico de Oz, um doloroso fracasso comercial que lhe fechou definitivamente a possibilidade de uma carreira na realização. Não que Murch pareça ter sofrido sobremaneira com isso: “calhou assim,” como diz sem rancor. “O George andou à toa até American Graffiti e A Guerra das Estrelas terem obtido o sucesso que tiveram, o Francis andou à toa até o Padrinho ser um fenómeno... O meu Oz não foi um sucesso, e depois não continuei.”

Murch, com o seu ar de cavalheiro nova-iorquino de outras eras, aparentando menos idade que os seus 72 anos e impecavelmente vestido mesmo no calor sufocante do verão à beira-lago, não parece demasiado preocupado; nota-se o à-vontade e a satisfação com o caminho que escolheu. Em resposta a um jornalista alemão, evoca o seu fascínio inicial pela musique concrète e pelo trabalho de Pierre Schaefer e Pierre Henry, e as suas primeiras experiências de manipulação de fita magnética. Fala da bolsa que recebeu para estudar História da Arte primeiro em Perugia e depois na Sorbonne. “Era a altura da Nouvelle Vague, e era impossível não ter 20 anos em Paris em 1963 e não estar apaixonado pelo cinema...” De regresso aos EUA, candidatou-se a várias escolas de cinema, foi aceite numa, também com uma bolsa – e o resto, como se diz, é história.

Não são Coppola e Lucas os únicos cineastas com quem Murch manteve uma relação regular, trabalhando em vários filmes seus – Philip Kaufman ou o falecido Anthony Minghella são outros exemplos - mas a presença do seu nome é tão rara que sugere uma grande selectividade nos projectos que aceita. O montador, contudo, não vê as coisas assim – para ele, é muito mais o acaso que decide as escolhas que vai fazendo.

“Tinha uma mulher e quatro filhos, e portanto tinha de tomar conta da família. Mas o meu processo de escolha de projectos nunca mudou grandemente, e é muito moldado pelo acaso e por questões fora do meu controlo, financiamento, agenda...” Cita um filme de Kaufman cujo financiamento caíu por terra, libertando-o para trabalhar com Mark Levinson em Particle Fever, depois do realizador lhe ter enviado uma montagem de trabalho. Já a sua colaboração em Tomorrowland veio na sequência do convite do seu realizador, Brad Bird, “que conheço pessoalmente há mais de trinta anos e com quem sempre quis trabalhar”.

Mas, claro, é dos seus grandes filmes que todos querem falar. A “cavalgada das valquírias” de Apocalypse Now, ou O Vigilante, filme onde o som é central (e que Murch explica ter tido toda a liberdade para montar enquanto Francis Ford Coppola entrava em rodagem de O Padrinho Parte II). Momentos que remetem para um momento em que ainda se trabalhava em película e do qual o nova-iorquino foi testemunha privilegiada, quando não actor directo. Murch fala sem pruridos nem falsas modéstias, comparando como haviam sido precisos três montadores para lidar com as 250 horas de película revelada para Apocalypse Now enquanto hoje um único montador tem todo o material de um filme ao alcance do dedo num disco rígido.

“Rodámos tanto material só para a cena das Valquírias como se costuma rodar para um filme inteiro,” explica Murch para exemplificar o que mudou entretanto. “Tínhamos seis câmaras, que podiam rodar dez minutos de cada vez, a correr ao mesmo tempo, registando o acontecimento como se estivesse realmente a ter lugar, como um documentário. E montar essa cena foi como montar um documentário: não sabíamos onde é que estaria o material realmente bom e era preciso desbastar. No Apocalypse Now, ao todo, rodámos 250 horas de película – o que dá cerca de cem minutos de filme rodado por cada minuto de filme acabado, e como era tudo em película havia também uma dimensão de exercício físico. No Particle Fever eu fui o único montador e tive 500 horas de material à distância de um botão. É evidentemente mais fácil encontrar a imagem que se procura no meio disso tudo, mas os desafios continuam a ser o mesmos – e continuam a ser completamente invisíveis para quem está a ver o filme.”

 

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