A higiene musical de um português verdadeiramente fixe tem de passar por alguns usos fundamentais, como distinguir a Amália brejeira da cantora profunda e perfeita; reflectir sobre as letras de Adolfo Luxúria Canibal; não perder os concertos comentados aos domingos na Casa da Música, estar sempre informado sobre o António Pinho Vargas, engatar ao som do PZ, ter um poster da Xana ou dos Rádio Macau, citar o Rui Reininho, explicar aos turistas o Carlos Paredes mais o José Afonso, abrir as janelas a ouvir em berros os Linda Martini mais os X-Wife e, ano a ano, abancar com tudo em Paredes de Coura.
Coura são as termas da música. O tratamento para todas as patologias operado pela maturação dos sons no esplendor da paisagem. Devíamos ir a Coura com receita médica, dias de folga em todos os serviços, sem descontos nem prejuízos. O bilhete do festival de Coura devia descontar inteiro no IRS. O país precisa urgentemente de avançar com o TGV só para abrir uma linha directa às terras daquela fronteira.
Os centros de saúde têm de passar a enviar o cartaz do festival para casa de cada utente e assinalar o que se manifesta imperdível. The Soft Moon, por exemplo, é coisa para desempenar povos inteiros e mudar-lhes os destinos para aventuranças de prestígio e orgulho. Estou a ver os portugueses, de pescadores a ceifeiros, advogados a políticos, carteiros a guardas florestais a sorrir com uma intimação para a felicidade: está convidado para abancar no paraíso natural e sonoro, venha cuidar da pele e da queda de cabelo, livre-se de calos e de ténias, venha cuidar da solidão, venha curar o coração. Efectivamente, as férias deviam ser vinte e dois dias úteis mais Coura, uma espécie de sine qua non para a vida, para a beleza inteira de se ser humano.
Com a capacidade de acabar com infantilidades já fora do prazo, bruxedos e maus-olhados diversos, ciclos negativos, namoros abusivos, apatias inexplicáveis e cansaços em geral, dores ou feridas custosas de cicatrizar, o festival de Coura é indicado. Como profilaxia ou terapia, previne e cura, motiva e alegra, celebra e premeia. Quero dizer, para acabar com virgindades já pesadas como chumbo, fealdades ou sombras na auto-estima, para acabar com a exclusão, a impressão de que ninguém nos entende, ninguém nos vê, ninguém nos quer, Paredes de Coura é a acendalha para a grande labareda que há em cada um de nós. Acendemo-nos como alvos magníficos para o frenesi do mundo, para o frenesi decente de se estar vivo.
Conheço moços e moças felizes só depois de Coura. Moços e moças que chegaram ali meio desalentados, desorientados, indefinidos como se não tivessem nem nome. E testemunhei como se fizeram heróis de si mesmos, esticados de uma coragem inédita que os reposiciona nos seus sonhos e na sociedade. Sou testemunha de milhares de amores eternos que ali se imaginaram. Quando os Tindersticks tocaram, por exemplo, existia Deus entre nós e os milagres conseguiam-se por bagatelas. Só quem não foi não soube o que é a felicidade. Só quem não foi não soube o que é a transcendência.
O festival de Paredes de Coura é um culto de fé. Era importante que se levantasse ali um monumento perante o qual se expressasse a dimensão espiritual da liberdade e da alegria de participar. Um monumento que lembrasse que lutar por estarmos em paz na multidão é um dos sentidos da vida. Estarmos em paz imersos na multidão amiga, igualmente grata e apenas dedicada a estar e ser feliz.
Guardo a minha costela punk com muito carinho. Sinto-a como coisa de prata que se pode polir no pensamento. Com o tempo, contra o certinho espartilhado do mundo, ela torna-se um tesouro. Contra as hipocrisias e as diplomacias vazias de sinceridade, o lado punk da cultura é sempre uma desmistificação, um regresso à terra e à aspiração à igualdade. Sem doutores nem patrões, sem egos nem tretas. Apenas isso que digo, um mundo de gente junta com vontade de estar feliz. Paredes de Coura é assim. Vemo-nos por lá, certamente.