Grão a grão enche a galinha o papo

As novas restrições ao aborto diminuem as mulheres.

Estas palavras são do leitor João Lopes do jornal digital Observador em comentário à notícia da aprovação de alterações à lei da interrupção voluntária da gravidez (IVG) e explicam de uma forma concisa o que representam tais alterações aprovadas na sequência da iniciativa legislativa de cidadãos (ILC) com a designação Pelo Direito a Nascer.

Os promotores desta iniciativa – inequívocos opositores da legalização do aborto – são, no entanto, menos explícitos ao congratularem-se com a aprovação destas alterações: “A Comissão Representativa de Subscritores da ILC ‘Pelo Direito a Nascer’ está convicta que este é o primeiro passo em direção a uma sociedade mais justa e solidária, onde a nenhuma mulher seja negado o direito à maternidade” ou, ainda, “Continuaremos, com determinação e esperança, a percorrer este caminho. Esperamos contar com todos aqueles que desejam um Portugal onde se defenda a Maternidade e a Paternidade bem como o Direito a Nascer”.

Como já foi noticiado são diversas as concretas alterações ao regime da IVG e embora me pareça excessiva a convicção expressa pelo Movimento Democrático das Mulheres, por exemplo, que a “criação de taxas moderadoras para a Interrupção Voluntária de Gravidez significa o regresso ao passado no qual tantas mulheres arriscaram a sua própria vida e é mais um factor de agudização das desigualdades sociais”, não tenho quaisquer dúvidas que todas estas alterações legais têm um único objectivo: dificultar, porque não podem proibir, a IVG.

Na prática, concretizam uma perspectiva religiosa da vida e paternalista ou moralista do estatuto e direitos da mulher que pretende interromper a gravidez. Representam, assim, uma pequena vitória na luta promovida pela parte da sociedade que se opôs à descriminalização do aborto e que defende que a vida humana é sagrada, existindo e devendo ser protegida desde o momento da concepção.

Não é de estranhar que esta parte da sociedade se organize e procure atingir os seus objectivos. Isto, sem prejuízo de se poderem levantar problemas de inconstitucionalidade na medida em que as restrições, dificuldades ou limitações legais se venham a tornar em verdadeiros impedimentos ao exercício do direito da mulher a livremente interromper a gravidez. O que poderá ser o caso das obrigações prévias à IVG ora criadas caso tornem, na prática, muito difícil ou impossível a realização da IVG dentro do prazo legal de 10 semanas. Como é evidente, um direito só existe se puder ser exercido na realidade, não bastando que esteja consagrado no papel.

Sobre esta matéria, como sobre todas as outras, é sempre útil sabermos o que se passa lá por fora, uma vez que para além da fase dos Descobrimentos não somos conhecidos por sermos particularmente inovadores.

Nos Estados Unidos da América, o direito ao aborto por parte dos cidadãos ou se quisermos, a proibição de os estados federados proibirem a interrupção voluntária de gravidez resultou da famosa decisão do Supremo Tribunal de 1973, conhecida como Roe V. Wade. E desde essa data, em nenhum estado norte-americano é proibido o aborto.

Mas a movimentação social e política dos cidadãos norte-americanos que defendem a proibição do aborto não parou em 1973. Pelo contrário as iniciativas a nível estadual têm sido muito variadas. Umas com sucesso e outras não. As estratégias conservadoras mais radicais, tal como conseguir que seja decretado legalmente que a vida começa desde o momento da concepção têm sido derrotadas nas urnas até porque a maioria dos norte-americanos aceita que o aborto seja legal em algumas circunstâncias. Mas as estratégias mais moderadas têm-se revelado muito eficazes, levando, por exemplo, ao encerramento de numerosas clínicas onde se praticava a IVG com a criação de exigências burocráticas e técnicas para o seu funcionamento extremamente onerosas.

A excelente revista Atlantic no artigo Planeando o fim do aborto, publicado a semana passada, explica pormenorizadamente a estratégia da associação United for Life e concretizada na publicação Defending Life, um compêndio de possíveis medidas legais restritivas. Só este ano, já foram aprovadas 51 novas restrições ao aborto em diversos estados norte-americanos que vão desde a obrigação de consentimento paternal com reconhecimento notarial no caso de grávidas menores até à proibição de utilização de fundos federais ou estaduais para a prática de IVG ou ainda à obrigatoriedade de informar as grávidas da possibilidade de reverterem o processo químico de IVG.

A portuguesa “Pelo Direito a Nascer” acaba de dar um pequeno exemplo dessa militância. Certamente já estará a preparar o próximo.

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