As bombas não têm olhos

Passaram 40 anos sobre a queda de Saigão e 20 sobre o restabelecimento das relações diplomáticas entre os EUA e o Vietname. A organização UBELONG quis sarar as feridas ouvindo as histórias dos veteranos norte-vietnamitas e das suas famílias.

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As imagens da guerra do Vietname que o fotojornalista Lonnie Schlein guardava na memória não eram muito diferentes das que muitos conseguem evocar: crianças a correr, uma delas sem roupa, depois de um ataque com napalm, a 8 de Junho de 1972 (Nick Ut/Associated Press); uma fila de pessoas a subir para um telhado para entrar num helicóptero americano e fugir de Saigão no derradeiro dia da guerra, a 30 de Abril de 1975 (Hubert Van Es/United Press International); a fracção de segundo em que a bala disparada da pistola de um polícia sul-vietnamita entra na cabeça de um suspeito, a 1 de Fevereiro de 1968; um marine americano negro, ele próprio ferido e com a cabeça ligada, que tenta socorrer um camarada, na zona desmilitarizada, em Outubro de 1966 (Larry Burrows/Life). Estas são, em grande parte, as “nossas” imagens do conflito sangrento entre os Estados Unidos e o Vietname do Norte (1955-1975). Nos Estados Unidos chama-se a Guerra do Vietname, no Vietname chama-se a Guerra de Resistência Contra a América, ou simplesmente, Guerra Americana. Há ainda quem lhe chame Segunda Guerra da Indochina. As estimativas apontam para 3,8 milhões de mortos.

Lonnie Schlein “estava profundamente envolvido no movimento antiguerra, sobretudo entre meados e finais da década de 60”, ou seja, quando se intensificaram os envios de soldados para o território. “Estas fotografias, tal como muitas outras, certamente que ajudaram a fortalecer a minha crença de que o envolvimento americano na guerra civil do Vietname era moral e eticamente errado, e que os Estados Unidos não tinham qualquer direito de intervir”, afirma por email à Revista 2.

Mas agora, 40 anos depois, outras imagens irão juntar-se ao seu arquivo mental do conflito. A UBELONG, uma ONG com sede em Washington, quis ouvir e registar as histórias contadas pelos veteranos do Norte, aqueles contra quem os EUA combatiam e que muito raramente foram ouvidos pelo antigo inimigo, mesmo que as relações diplomáticas entre os dois países tenham sido restabelecidas há 20 anos (11 de Julho de 1995). A organização desenvolveu um projecto de fotojornalismo cidadão, liderado por Schlein (que integrava a equipa do New York Times quando esta recebeu o Pulitzer, em 2002, pela cobertura dos ataques de 11 de Setembro) e Raul Roman, um dos seus fundadores.

“Sentimos que o mundo nunca viu as histórias e as caras do outro lado da guerra do Vietname”, afirma Roman, também por email. “Este é um conflito que, de muitas formas, ainda não terminou.”

Os encontros decorreram em Hanói e em aldeias rurais na província de Hai Duong, entre Hanói e Haiphong, que foi fortemente atingido pelas bombas americanas por ser o principal porto do Vietname do Norte. “Muitos dos veteranos que entrevistámos contaram a sua história pela primeira vez e os nossos colegas jovens vietnamitas ficaram chocados com os relatos. A realidade crua da guerra e o seu rescaldo não chegaram à maioria das pessoas no Vietname”, adianta Raul Roman.

Há quem sinta uma certa nostalgia. Pham Xuan Do, de 77 anos, conta ao apertar os botões da sua farda: “Tenho saudades da guerra. Tenho saudades de viver escondido, de correr para me proteger e de disparar para abater soldados nos confrontos. Mas os tempos passaram e sinto que perdoo.” Mas os relatos são sobretudo de dor. Como este, de Tran Van Van, de 84 anos: “Éramos tantas vezes bombardeados e tantas pessoas morreram nos campos de batalha. Os feridos graves eram levados para o centro de auxílio, mas eu enterrei os meus amigos mortos no campo de combate. Sinto muito a falta deles.” Lutou entre 1965 e 1972, até a sua unidade ser atacada a meio da noite, quando todos dormiam. Durante todo esse tempo apenas foi a casa uma vez, por um período de dez dias, em 1968. Foi nessa altura que ele e a mulher, Pham Thi Sang, conceberam o filho, que nasceu com graves problemas devido à sua exposição ao agente laranja, uma mistura de herbicida e desfolhante que as forças americanas lançavam na selva, no Norte do país, para destruir os esconderijos da guerrilha.

Segundo os dados oficiais, entre 1961 a 1971 foram largados 80 milhões de litros de agente laranja. Para além da destruição ambiental, os 4,8 milhões de pessoas expostas ao agente tornaram-se potenciais vítimas de malformações, cancro e problemas neurológicos.

“Apesar de a missão não ser de forma alguma política, ouvir as histórias contadas pelos veteranos de guerra vietnamitas e daqueles que foram afectados pelo uso do agente laranja apenas reforçou a minha posição de que infligimos um mal pesadíssimo ao povo vietnamita”, diz Schlein. “Fiquei chocado por ver que em famílias que estiveram directamente expostas ainda há bebés que nascem com terríveis malformações e todo o tipo de problemas. Foi uma experiência terrivelmente triste e poderosa visitar algumas dessas crianças. Nunca esquecerei essas imagens.”

Nong Van To estava encarregado de apanhar as fardas que os soldados do Sul abandonavam rapidamente no chão quando as forças do Norte conquistaram Saigão, pondo fim ao conflito. Agora, aos 65 anos, está sentado nas traseiras de um restaurante dos subúrbios de Hanói e resume: “As pessoas vivem, as pessoas morrem. Eu tive sorte e vivi. As bombas não têm olhos.”

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Raul Roman/UBELONG

Nong Van To, nas traseiras de um restaurante, em Hanói

Nong Van To alistou-se no Exército do Vietname do Norte numa unidade de artilharia de curto alcance, mobilizada no Sudeste do país. O momento de que mais se orgulha foi quando abateu tanques do Exército sul-vietnamita. Era um dos soldados encarregados de recolher as roupas que os soldados inimigos deixavam no chão quando Saigão foi tomada pelo Norte, para não serem apanhados.

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John DeSanto/UBELONG

Tran Van Van, 84 anos, e a sua mulher, Pham Thi Sang, com 77, na sua casa em  Binh Giang

Van esteve no Exército norte-vietnamita entre 1965 e 1972. Já era casado e tinha três filhos. Foi enviado para a fronteira com o Camboja como soldado, no trilho Ho Chi Minh, com a tarefa de proteger a estrada dos bombistas. Acabou por ser dispensado quando foi ferido num bombardeamento. O ataque foi uma emboscada a meio da noite enquanto ele e os membros da sua unidade dormiam. Ficou inconsciente e acordou no centro de auxílio. Ainda hoje tem pesadelos com esse dia. Enquanto Van combatia, a mulher era obrigada a trabalhar nos campos de arroz para sustentar a família. “Éramos muito pobres e estávamos sempre com fome porque não havia arroz suficiente para mim e para os meus filhinhos. Um dos momentos mais difíceis da minha vida foi quando tive de ir para os campos logo a seguir ao meu bebé nascer. Mas não tinha alternativa. Não queria contar ao Van, por isso escrevia-lhe cartas de encorajamento para ficar e lutar na guerra. O nosso país era mais importante.”

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Raul Roman/UBELONG

Nguyen Van Tung (73 anos) e a mulher, Duong Thi Ly (72), na sua casa  na província de Bin Giang

Tung deixou a mulher, com quem casara quatro anos antes, e os dois filhos para combater na provínica de Quang Tri em 1968. A vida ali era difícil, e Tung frequentemente tinha de lutar durante vários dias seguidos e era obrigado a beber água da chuva que recolhia das crateras provocadas pelas bombas. Desde 1975 que Tung tem problemas de saúde. “Tudo o que eu queria era voltar a andar”, diz este homem, que viu a “chuva” do agente laranja cair sobre ele e os seus colegas, na selva. Na altura, a exposição ao veneno sufocou-o, sangrava do nariz e tinha falta de ar. Entre 1976 e 1978, foi guarda num campo de reeducação onde os soldados vietnamitas que tinham sido capturados aprendiam a filosofia marxista e de Ho Chi Minh.

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Raul Roman/UBELONG

Pham An Thic (74 anos), a mulher, Nguyen Thi Lai (76), e a mãe dele, Pham Thi Dau (95), na sua casa em Hai Duong

Thic esteve numa unidade de artilharia entre 1965 e 1977 e foi o único filho da família que sobreviveu à guerra. Perdeu quatro irmãos. “Quando encontrava outros soldados da minha terra, perguntava-lhes sobre os meus irmãos, mas ninguém sabia onde estavam.” Só quando regressou a casa é que soube do destino dos irmãos. A sua mãe, Dau, está agora quase cega, mas lembra-se de receber cartas do Governo anunciando a morte dos filhos. “Não sei como morreram. Não sabia o que andavam a fazer quando morreram. Só soube que desapareceram. Perder um filho é a maior das tristezas.” A mulher de Thic esperou por ele 12 anos. “Não sabia se estava vivo ou morto. A única coisa que eu podia fazer era tomar conta dos meus filhos e trabalhar para os alimentar. Eu não era especial. Era uma entre milhares de mulheres e mães vietnamitas que tinham de sobreviver sem os maridos durante a guerra.” Lembra-se claramente do dia em que o marido voltou a casa. Estava a trabalhar nos campos de arroz quando um dos vizinhos a chamou. “Corri até casa. Estava tão feliz por o ver ao fim de tanto tempo.”

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Lonnie Schlein/UBELONG

Nguyen Phuc Ky (80 anos) e a mulher,Vu Thi Nhu Huong, em Hanói

Nguyen Phuc Ky e a mulher estão casados há 50 anos, mas durante toda a guerra nunca se viram. Nguyen serviu no Exército entre 1964 até ao final da guerra, em 1975, e diz que Khe Sanh foi a batalha mais importante que travou. “Vi um piloto da Força Aérea americana aterrar num campo de amendoins em Dien Chau. Os meus colegas soldados queriam matá-lo, mas eu fi-los perceber que devíamos mantê-lo como prisioneiro de guerra. Mantive a sua placa de identificação e acabei por enviá-la para o meu irmão que vive na Califórnia para ver se ele estava vivo. Ele encontrou-o, mas nunca teve coragem de lha entregar.”

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Raul Roman/UBELONG

Pham Xuan Do (à direita), de 77 anos, com a farda original, e Le Quang Kieu (68), capitão na reforma, na Vila da Amizade

Do é casado e teve cinco filhos, um dos quais morreu devido a problemas relacionados com o agente laranja. Foi capitão do Exército norte-vietnamita entre 1965 e 1975. Estava dentro de um dos tanques que atacaram o palácio presidencial de Saigão, a 30 de Abril de 1975, um momento que simboliza o fim do conflito. “Tenho saudades da guerra. Tenho saudades de viver escondido, de correr para me proteger e de disparar para abater soldados nos confrontos. Mas os tempos passaram e sinto que perdoo.”

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Lonnie Schlein/UBELONG

Tran Thi Thon, 66 anos, no jardim da sua casa em Hai Duong

Thon serviu no Exército entre 1965 e 1975, abastecendo militares de norte a sul. Era uma das muitas mulheres que davam apoio logístico às tropas. “O dia que recordo melhor foi quando encontrámos um piloto americano de um avião abatido. Vi que tinha perdido o sapato e por isso tirei o meu e pu-lo no pé dele. Depois, peguei no meu lenço e limpei-lhe o sangue da cara. Senti muita compreensão por ele, porque era apenas um ser humano e tal como eu não queria estar na guerra. O piloto depois disse à minha equipa para se esconder porque vinha um helicóptero em seu socorro e iria abater-nos. Mas o helicóptero nunca veio e o piloto foi capturado pelos nossos soldados.” Thon conta que quando fazia as suas entregas via um líquido amarelado a cobrir a selva. Era fresco e por isso ela e as colegas pegaram em folhas e esfregaram a substância na pele para se refrescarem. Era agente laranja. Agora, a pele dos braços, das pernas e da barriga está repleta de cicatrizes. Fez várias cirurgias. Mas a pior consequência da exposição foi o seu filho doente, que morreu de cancro do pulmão aos 35 anos, e a sua filha, que tem uma grave incapacidade física e problemas mentais.

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Lonnie Schlein/UBELONG

Pham Phu Phong, 93 anos, na sua casa em Binh Giang, em Hai Duong

Quando Phong se alistou, já tinha acabado o liceu, estava casado e tinha oito filhos. A sua tarefa no Exército era distribuir mantimentos nas linhas da frente. Ficou orgulhoso quando soube que dois dos seus filhos também se alistaram, dois anos depois dele. Buscava inspiração quando se sentava em roda com os colegas, à noite, e cantavam juntos e partilhavam histórias sobre as famílias que tinham deixado para trás. “Sabíamos que tínhamos de ser fortes e seguir em frente, senão morríamos.” Phong tem agora um cancro em estado terminal. “Juntei-me ao meu Exército porque tinha uma obrigação e dei o meu melhor para seguir as instruções. Fiz tudo o que podia, mas não sei como perdoar verdadeiramente os Estados Unidos.”

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John DeSanto/UBELONG

Duong Van Giang, 67 anos, em Hanói

Duong Van Giang passou a maior parte da sua vida pós-guerra nos campos de arroz em Bac Giang. Casado há 38 anos, tem cinco filhos, dois deles afectados pelo agente laranja. Em 1968, aos 19 anos, foi mobilizado durante sete anos para a “frente de fogo” — a zona que separava o Vietname do Norte e do Sul e que era considerada a mais perigosa durante a guerra. “Depois dos raides aéreos, mandavam as mulheres ir limpar os trilhos. Uma vez, oito mulheres caíram numa armadilha numa gruta, quando voltavam para se esconder. A gruta ruiu e não pudemos salvá-las. Durante três dias ouvi os seus gritos. A guerra não traz nada às pessoas, só morte.”

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Lonnie Schlein/UBELONG

Nguyen Duc Mien, 72 anos, e a sua neta, Thang Phuong, de seis, na sua casa em Hanói

Nguyen Duc Mien foi tenente da Força Aérea norte-vietnamita entre 1963 e 1976. Combateu por todo o Sul do Vietname e também no Camboja. “Agora, a minha  neta mais velha estuda na Califórnia. A guerra acabou. Vamos ser amigos.”

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