Tratados europeus: um peso com duas medidas
Temos na União Europeia um peso e duas medidas para a interpretação dos tratados e regulamentos.
Só após o tratado de Maastricht (1992) e o tratado de Lisboa (2007) e com a constituição da União Europeia (UE) é que são incluídas de forma explícita, clausulas que abrangem outras áreas da sociedade, nomeadamente a saúde e bem-estar dos cidadãos. O Tratado Europeu de Maastricht determinou que “as exigências em matéria de protecção da saúde constituem uma componente das demais políticas comunitárias. A “cláusula social” do Tratado Europeu de Lisboa impõe que “na definição e execução das suas políticas e acções, a União tem em conta as exigências relacionadas com a promoção de um nível elevado de emprego, a garantia de uma protecção social adequada, a luta contra a exclusão social e um nível elevado de educação, formação e protecção da saúde humana
Quando a actual crise se declarou e as primeiras medidas de austeridade severa foram adoptadas, era indispensável avaliar o impacto do programa de ajustamento na saúde e nos serviços de saúde dos países intervencionados para, eventualmente, recalibrar os conteúdos desse programa e minimizar os seus efeitos. Tanto as instituições europeias como os governos ignoraram esse tipo de análises. É manifesto que a saúde e o bem-estar deixaram de constar da agenda política europeia.
Invocam-se os tratados para o cumprimento do défice orçamental, mas por outro lado ignoram-se quando os mesmos Tratados se referem na área da saúde à obrigatoriedade de se ter em conta os impactos na saúde de todas as políticas.
Critica-se a constituição portuguesa pelo excesso de garantias e direitos sociais, por outro lado pretende-se incluir na constituição cláusulas com compromissos relacionados com a dívida e défice que limitam ainda mais a liberdade de decisão democrática do País e dos cidadãos. Recordemos que, como resultado das políticas financeiras impostas do exterior, a despesa em juros da dívida pública é já superior ao orçamento da saúde e educação.
Os programas de ajustamento económico e financeiro que têm sido aplicados nos últimos anos, são o melhor exemplo do apagamento dos princípios de referência dos Tratados e ignoram os contratos sociais em vigor.
A austeridade imposta pela Troika é apresentada como a única solução para a crise da dívida e do défice e como inevitabilidade histórica. No entanto académicos reconhecidos mundialmente, como é o caso de Martin McKee, referem que os países em que apostaram em saídas para a crise baseadas no investimento, com medidas menos duras de austeridade estão agora em fase de crescimento mais acentuado.
As estruturas europeias responsáveis pelos aspectos relacionados com a gestão financeira, estão particularmente activas, enquanto as estruturas relacionadas com a saúde e bem-estar dos cidadãos se eclipsam e não asseguram o cumprimento dos tratados nas suas áreas de competência.
Temos na União Europeia um peso e duas medidas para a interpretação dos tratados e regulamentos.
A nível Europeu é necessário regressar à ideia de uma visão conjunta das políticas públicas europeias, nomeadamente na área da saúde. Não é aceitável manter-se a tendência de desarticulação dos serviços públicos de saúde, invocando razões exclusivamente financeiras, ignorando a importância dos sistemas de saúde como garantia de desenvolvimento económico, assegurando populações saudáveis, gerando riqueza económica na sua envolvência e bem-estar social da população
Sem contrato social, sem harmonização das políticas públicas, sem uma base de conhecimento nas políticas de saúde, sem classe média, sem jovens, numa Europa só para alguns, não há futuro que possa ser aceite como destino. Nessa Europa os sistemas de saúde atuais e o SNS dificilmente serão viáveis.
Farmacêutico, membro da Administração da Fundação Saúde SNS