Agarrei o cálice e traguei-o, sem vergonha nem medo disfarçado de respeito à portuguesa (os meus pais lá no fundo no fundo são velhos hippies a passearem-se pela casa todos nus). Corri a esfera achatada, espreitei os Urais e embrenhei-me na Amazónia, andei de dromedário no deserto e fiz amor num comboio, engendrei três ou quatro amigos a que chamo irmãos e uma filha linda com grandes olhos azuis, cheia de dentes e ramelas e cabelo desgrenhado e mau-feitio que todos os dias diz qualquer coisa que me desmonta em gargalhadas a dureza “votre fille a beaucoup de caractère” diziam as educadoras em França, nem vocês fazem ideia camaradas, haviam da ver em casa.
Passei meses inteiros (já hão de ser anos) só a ouvir música, paradinho e atento a tentar compreender a maravilha sem nunca lá chegar (e ainda bem, desconfio). Não tenho memórias desligadas da música: o meu primeiro beijo, a morte da minha avó, todas as mulheres com quem dormi, o nascimento da miúda, tudo tem uma canção específica e inseparável do momento. E isto sem saber tocar coisa nenhuma, sem sequer o desgosto do meu pai de não saber ler uma pauta, de não saber alinhar um acorde: melómano vivi, melómano hei de morrer, tão fadista é quem sabe ouvir como quem sabe cantar.
Comi, bebi e fumei como se o amanhã não existisse, porque na realidade... não existe. Agarrei cardinas de vomitar na cama, de meter o corpo fora dum carro em andamento, de rebolar turísticas escadarias lisboetas abaixo e levantar-me a seguir como se não tivesse sido nada (só doeu no dia seguinte). Enchi o bandulho que nem um abade, comi de tudo como um bom omnívoro (somos nós os porcos e os ratos): é verdade, não gosto de mioleira nem de sardinha assada (um pecado para um português) mas de resto tudo o que cai no prato morre, ainda por cima como lento (aprendi com o Hugo), sou sempre o último a acabar. Fumei e fumei como uma chaminé, comecei a fumar para encher o olho às miúdas e depois ganhei-lhe o gosto, saltei do Ventil para o tabaco de enrolar com filtros e mortalhas extremamente específicas porque sou da vergonha deficitário.
Dormi com elas todas, de todas as cores e feitios e sotaques e penteados, cada uma única e irrepetível, como são os humanos todos. Cada uma com sua gaveta cerebral, sua banda-sonora, seu cheiro de cama específico, ordenadinhas as hei de levar para a cova comigo, arranjadinhas entre a primeira que me atirou com o coração para a debulhadora e a última que me deu amor e casa e filhos e quente e tudo.
Plantei uma árvore e publiquei um livro, dancei sem medo do ridículo e nadei nu ao luar, aplaudi touradas, cantei hinos, correram-me lágrimas cara abaixo diante de pintura e do Eisenstein e do Fellini e do Kurosawa (e sempre com a Marselhesa e a Semana Sangrenta, e a maioria das vezes com o Bach), embalei gatos moribundos com os olhos cheios, fui derrotado por malandros, carreguei caixões, levei porrada da polícia, pichei paredes, provavelmente tenho ficha na secreta e nunca fiz nada que me envergonhasse, que fosse menos próprio (diria a minha avó Belandina).
Tentei ser um bom pai e um marido decente, escrevi e escrevi e escrevi (aos peixinhos) porque o escrever me sai mais jeitoso apesar do pintar me dar mais prazer. Senti o medo da saída e depois apercebi-me que ele tinha passado.
Dei aulas na universidade (tratado a “doutor” e a “senhor professor” por atentos inteligentes), ganhei mais dinheiro do que merecia e encerei escadas de joelhos para pôr pão na mesa. Sei-me vivido e nunca me traí, o cinismo ainda não me roubou o sorriso e a Voraz Companheira se vier hoje à noite só me rouba o prazer de ter netos e a carta de condução, perdi-lhe o medo, rio-me na cara da caveira! Conheci a beleza, o amor, a intensa felicidade. Apagar-me-ei na certeza que os dias maus vão acabar.