Em Lisboa não “comemoramos o padroeiro” (até porque o padroeiro é o Vicente da barca e dos corvos), nem sequer “festejamos o santo”, em Lisboa “vamos aos santos”! O nosso vale por eles todos: Fernão de Bulhões, agostinho e franciscano, taumaturgo e doutor da igreja, emigrante, asceta e missionário, autoridade sobre Cícero, Séneca e Aristóteles; e mais importante de tudo: remendão das bilhas partidas das moças casadoiras (ora aí está uma metáfora subtil), um moço ali do alto da Sé.
Começamos por não ver os casamentos na televisão, a medonha Serenella a saltitar em frente da câmara, setenta anos e vestida como uma adolescente (good for her!), os grandes planos aos patrocinadores das alianças e das donas elviras, o Medina a ver se alguém sabe quem ele é, os noivos todos com penteadinhos à oficial das SS, o conjunto de padres mais sinistro alguma vez televisionado a dizerem coisas que “incendiarão as redes sociais” (como se fosse preciso muito); eu não sei de nada, missa na TV é sempre sem som, já conheço a conversa.
Lá para as 8 saímos e metemo-nos no metro cheio, velhinhos para as marchas e adolescentes à solta a beber rosé. Saímos no Chiado, o cheiro a sardinha desce até à plataforma, primeiros turistas abananados, manjericos no Camões, rua do Loreto, metade da malta com os barretes das cervejeiras: sardinhas a abocanhar as cabeças, manjericos a florir por cima da publicidade, os “vintage” com as coroas de Sto. António de há 3 ou 4 anos, os da edição deste ano com os halos iluminados. Descemos a Bica já meio a dançar, comemos e bebemos, espreitamos o gordo das farturas e o quadro do menino Jesus com bigodes (há uns anos era um a segurar uma imperial).
Subimos pela Horta Seca já definitivamente a dançar para descer para a Baixa, famílias burguesas muito limpinhas (eu já tenho uma nódoa de mostarda no cú) comem geladinhos da rua do Carmo, Garrett acima Garrett abaixo, com ar de quem só veio ver. No Rossio turistas ainda mais boquiabertos arrastam malas por entre as carrinhas das marchas (pois, isto não vinha na brochura), a malta empurra as barreiras enquanto os polícias fingem não sentir a maconha no ar, discute-se a transferência do ensaiador do Alto do Pina com a paixão habitualmente reservada à bola.
Vemos o fim das marchas nos Restauradores, ainda gritamos “Benfica! Benfica!!” mas a nossa marcha nunca ganha nada. O grupo incha com uns amigos apanhados aqui, uns amigos apanhados ali, os antropólogos fotografam os marchantes em pousio. Descemos mais quase até ao rio, a minha mulher e a Inês tentam comprar tabaco (amadoras!). Viramos para ir ao Santo lá acima, junto à Sé, a cera arde alto atrás do pedestal bonito do Soares Branco, há qualquer coisa de religiosidade mediterrânica no ambiente (andaluz ou siciliana) que nós lisboetas diluímos com as moedas dos encalhados ao livro do santo, moedas prontamente recolhidas pelos chungas e reinvestidas no capital social da Sagres e da Super Bock.
Descemos novamente para chegar a Alfama por baixo, que a média etária do grupo já não permite a curva do Limoeiro, “pit stop” para sardinhas e bifanas no Chafariz de Dentro, respiramos fundo, ganhamos coragem e investimos para o largo de São Miguel, e aí dançamos! “Aperta aperta com ela!!” dançamos porque não podemos não dançar, porque se há um que se abana lá em cima em Santa Luzia nós respondemos todos como boas moléculas no mar de gente.
Ninguém liga nenhuma aos empurrões e pisadelas, dançamos todos, novos e velhos e a inevitável criancinha adormecida no carrinho, a tatuada agressiva com um laçarote iluminado na cabeça e os moços do Sri Lanka que subiram da Mouraria, o casal de velhotes muito agarradinho, o adolescente benzoca aos caídos, o gang da Curraleira e o amigo do amigo que trouxe pastéis de bacalhau na mochila, o “freak” dos piercings e os “hipsters” que insistem em mergulhar as barbas da moda na minha imperial (não faz mal, o meu sistema imunológico é de aço), o cromo de kilt e os dos pauzinhos das selfies e as velhas caras do passado que me sorriem sem palavras do meio da multidão, valha-nos Sant’Antoninho que não se percebe como é nunca morre ninguém... vá pronto, só muito raramente.
Separo-me dos outros, Chafariz de El-Rei, Casa dos Bicos, paro na Alfândega só para fruir a Conceição Velha por um momento, a minha fachada preferida de Lisboa, tão errada no pombalino que a cerca, Terreiro do Paço com os gaiatos a dançar, rua Augusta, Rossio, as carrinhas cuspideiras do município a fazerem curvas à Fangio nos Restauradores. Safo-me já alto na Avenida, amanhã vai ser uma manhã sossegada em Lisboa.