Famílias ciganas derrubam “muro da vergonha” que as isolou quase uma década
Nem os protestos da Amnistia Internacional e uma queixa no Comité Europeu dos Direitos Sociais demoliram a barreira de betão erguida para “segurança” da comunidade cigana.
A tarefa ficou concluída há cerca de um mês e “já não ninguém se sente a viver num cemitério dos vivos”, realça triunfante um dos residentes no bairro erguido em 2006 pela Câmara de Beja na periferia da cidade junto às instalações do canil/gatil, para realojar cerca de 50 famílias ciganas que viviam num aglomerado de barracas.
O projecto autárquico incluiu, por razões de segurança, a construção de um muro com cerca de 100 metros de extensão por quase três metros de altura. Junto ao bairro existe uma estrada que é percorrida por viaturas pesadas e o receio de atropelamentos de crianças ciganas aconselhou que fosse erguida uma estrutura protectora.
Só que a comunidade não aceitou a solução por veicular um gesto segregador. Não esteve sozinha nos protestos. Contou com o apoio da Igreja Católica, da Amnistia Internacional, da União Romani Portuguesa que chegou a ameaçar fazer uma concentração nacional às portas de Beja, da Caritas e do Centro Europeu de Direitos dos Ciganos que apresentou uma denúncia junto do Comité Europeu dos Direitos Sociais, contra o Estado português em 2010.
Mesmo assim, este movimento de solidariedade não conseguiu demover os executivos comunista e socialista que alternaram na Câmara de Beja e, já em 2015, foi decidido pela comunidade cigana derrubar o que restava do muro. “Agora até já vemos a cidade” diz com gesto de cabeça outro morador, quando o PÚBLICO visitou o bairro.
Bruno Gonçalves, delegado nacional do programa Romero II, que desenvolve actividades com jovens ciganos, revê-se no gesto: “Já se derrubou o muro. É uma grande vitória” que significa ao mesmo tempo um sinal de viragem no modo de estar dos ciganos, cansados dos “juízos de valor que os outros (não ciganos) fazem" deles, acentua.
A satisfação é patente nas famílias do bairro das Pedreiras, e Prudêncio Canhoto, mediador cigano, que tem sido o elo mais forte no derrube de barreiras entre a comunidade cigana e não cigana, deixa expressa uma vontade colectiva: “ Não queremos que as pessoas pensem que os ciganos só sabem mandar o muro abaixo”.
Assim, uma parceria envolvendo várias entidades (Câmara de Beja, União de Freguesias do Salvador e Santa Maria, Rede Europeia Anti – Pobreza (REAP) e Centro Social Cultural e Recreativo do Bairro da Esperança), avançou com um projecto que visa a melhoria das condições de vida no Bairro das Pedreiras.
Júlio Silva, um dos jovens residentes no bairro, dinamizou a comunidade para reparar os telhados das habitações enquanto se preparava outra tarefa: pintar as 50 casas ali existentes. A autarquia aprovou a verba necessária para a aquisição das tintas e democraticamente, os moradores decidem que o azul deveria ser a cor predominante nas habitações. “Uns queriam o amarelo ou o castanho, mas a maioria queria o azul e a minoria acatou” ,contou ao PÚBLICO Anselmo Prudêncio técnico da REAP em Beja.
E assim na passada sexta-feira as primeiras casas começaram a ser pintadas. Prudêncio Canhoto deixa um aviso prévio: “quem mora nas casas é que as vai pintar ”.
Maria Mónica foi a primeira a avançar. Trouxe de casa uma cadeira, pediu um pincel e começou a pintar a fachada da sua habitação. Decorridos alguns minutos tinha o rosto e a roupa salpicados de tinta. “Não importa. A minha casa vai ficar mais bonita” diz, sorrindo.
Tiago Marques, pede a um dos filhos para tomar conta do irmão mais pequeno enquanto ele e a esposa cobrem a parede da sua casa de branco. Pintar a pincel demora uma eternidade. Surgem os primeiros rolos e a coisa acelera. À reserva inicial, segue-se o entusiasmo e as casas vão mudando de cor.
A tarefa vai prosseguir ao longo das próximas semanas enquanto a parceria já está a tratar do próximo objectivo: arborizar o bairro e construir um parque de estacionamento para as viaturas. O técnico da REAP tomou nota das árvores que a comunidade cigana quer plantadas: “figueiras, ameixoeiras, pereiras e outras árvores de fruto”. Um dos ciganos reconheceu que não sabe plantar as árvores, mas Anselmo Prudêncio, atribuiu-lhe a tarefa de as regar.
Outro apareceu-lhe com dentes de alho nas mãos e perguntou como é que se semeavam. “Não custa nada. Joga-os para o chão, tapa-os com terra e rega-os”.
A Câmara de Beja reage agradada. O vereador Vítor Picado, que lida directamente com a comunidade cigana, disse ao PÚBLICO que a autarquia não vai reconstruir o muro, reconhecendo o lado que de negativo representou para as famílias do Bairro das Pedreiras. O caminho, agora é outro e passa por deixar nas mãos da comunidade as tarefas que podem melhorar a sua qualidade de vida. “ Vamos instalar no bairro um pavilhão que até agora estava em Alqueva, para o transformar num espaço multiusos”.
No lugar do muro, vão ser instaladas floreiras, compromete-se o autarca. E na próxima Primavera vão aparecer muitas papoilas vermelhas, daquelas que salpicam as searas de trigo. Foram distribuídas aos moradores saquinhos com sementes da planta que mais caracteriza o Alentejo. “ Queremos ter muito bonito o nosso espaço” anseiam as famílias do Bairro das Pedreiras, agora libertas de uma barreira que as estigmatizava.