Que ilha deserta levava para um livro?

Eis-nos chegados à altura do ano em que atacam os escaldões e os inquéritos de Verão. Já me besuntei de protector solar, mas não há nenhum produto igualmente eficaz que me proteja de inquéritos de Verão. O que não se percebe, uma vez que quer o sol, quer os inquéritos, atacam a pele. Enquanto o sol queima, as respostas pretensiosas arrepiam e fazem pele de galinha. Às vezes, até provocam um calafrio na nuca. Chegam a encarquilhar dedos dos pés.

A Piz Buin podia comercializar um creme que protegesse deste tipo de agressões. Uma espécie de ecrã total contra afectação. Uma pomada que impermeabilizasse a pele à pergunta: “Que livro levava para uma ilha deserta?”

Nunca, em toda a história dos inquéritos de Verão, houve alguém que tenha respondido correctamente a esta questão. Mesmo a pessoa mais modesta, se lhe perguntarem, não evita ser um snobe literário.

Se Jesus Cristo, modelo de humildade, fosse inquirido, ia conseguir passar por pedante. “Tem graça ter perguntado. Gosto muito de ler. Nota-se? Curiosamente, estou agora a acabar o novo de contos da Teresa Veiga. Conhece? Soberbo. Também estou a ler a biografia do César, do Goldsworthy. Gosto muito de História. Mas para a ilha deserta se calhar levava um clássico. Tristram Shandy, do Stern, ou O Vermelho e o Negro, do Stendhal. Ou antes a Bovary? Ou qualquer um do Camilo. Não sei. Estou indeciso. Preciso de responder já?”

Já se lhe perguntassem sobre um filme ou uma música, Cristo não se importava de admitir um gosto mais popular: “Ui! Tinha de ser o Indiana Jones. Na música é o Hungry like the wolf, dos Duran Duran. Começo logo a bater o pé.” Mas com os livros ninguém se permite uma piscadela de olho irónica, não vá ser confundida com um pestanejar boçal.

Isso, conjugado com a quantidade de inquéritos que já foram respondidos em toda a história da imprensa levezinha, faz com que seja impossível brilhar como farol de intelectualidade só com essa pergunta. Já não há respostas originais. Todos os bons livros conhecidos já foram referidos. E os desconhecidos também. As respostas engraçadotas, tipo, “um livro que ensine a construir um barco para fugir de uma ilha deserta” ou “um kindle com todos os livros lá dentro”, já estão gastas.

Por isso, proponho uma nova formulação, que permita ao respondente manifestar toda a sua erudição. Em vez de: “Que livro levava para uma ilha deserta?”, sugiro que se passe a perguntar: “Que ilha deserta levava para um livro?”

O entrevistado pode assim escolher uma obra e explicar porque é que lhe introduziria um acidente geográfico, exibindo conhecimentos de literatura e de também de topografia.

Eu aprecio muito o Cem anos de solidão e sempre me pareceu que, no meio da balbúrdia de personagens que estão sempre a aparecer, fazia falta um lugar calmo onde o leitor pudesse recuperar o fôlego. Daí que levasse para lá a Ilha do Pessegueiro. “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer as Ilha do Pessegueiro, ao largo de Porto Covo, e em que vomitou durante toda a viagem de ida e de volta”.

Ou isso ou o mouchão de Alhandra no Senhor dos Anéis.

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