As últimas 99 mulheres que guardam as passagens de nível em Portugal

Em 1961 a CP tinha 1646 guardas de passagens de nível. Quando foi criada a Refer, em 1998, já só eram pouco mais de 900 as mulheres que zelam pela segurança dos atravessamentos rodoviários ao caminho-de-ferro. No ano passado havia 418, mas hoje são só 99 e estão em vias de desaparecer.

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Zita Dias é uma das últimas 99 guardas de passagem de nível Ana Almeida e Victor Melo

Quinze minutos antes, a mulher que guarda a passagem de nível da Esgueira (Aveiro) recebe um telefonema da estação de Sernada do Vouga (concelho de Águeda) onde se faz a gestão de todo o tráfego da linha do Vouga. Um agente regulador avisa-a que o comboio saiu da estação colateral. Cada um deles deve registar esse telefonema num livro próprio, com um número de ordem, a hora exacta da comunicação, o número do comboio e a sua procedência. Tudo tem de estar em sintonia para garantir que a mensagem foi enviada e recebida, responsabilizando ambos os ferroviários pela segurança da passagem de nível.

Agora Zita calcula quantos minutos faltam para a passagem do comboio e impede que carros e pessoas atravessem a linha. Ela é a guardiã da segurança da estrada e do próprio comboio a quem presta vassalagem erguendo uma bandeira vermelha enrolada. Se algo de errado acontecer subitamente, basta desenrolá-la para dar sinal de paragem ao maquinista.

Em Portugal são 99 as guardas de passagem de nível que cuidam diariamente da segurança de pessoas e bens. Sempre foram mulheres. Em 2014 a Refer tinha 418 destas profissionais, mas a progressiva automatização de passagens de nível tem feito com que o elemento humano seja substituído por campainhas, semáforos e barreiras automáticas que se fecham à passagem dos comboios.

A Refer orgulha-se de não ter feito despedimentos. Reformas antecipadas, rescisões voluntárias e, sobretudo, a integração destas trabalhadoras noutras funções, têm resolvido o problema. Algumas são agora contínuas, telefonistas, recepcionistas, administrativas.

Metade das guardas de passagem de nível estão na linha do Vouga, uma das últimas onde a modernização não chegou, mas também porque atravessa uma zona densamente povoada em que a linha férrea atravessa inúmeras estradas e caminhos. Ao todo são 18 passagens de nível.

No resto do país a linha do Norte conta com oito, a linha do Minho quatro, tal como a linha de Évora e a da Cintura (Lisboa). A Beira Baixa tem três e as linhas do Leste, do Alentejo e do Oeste apenas uma.

Para ter a funcionar 44 passagens de nível, a Refer precisa de 99 guardas. Os locais que estão guarnecidos 24 horas por dia (em três turnos de oito horas) precisam de cinco mulheres, a fim de assegurar folgas, férias, ou outras ausências.

Os atravessamentos rodoviários sobre o caminho-de-ferro saem caros à Refer. Por isso, são elevados os ganhos quando se eliminam passagens de nível (pela construção de pontes ou túneis), ou se automatiza o seu funcionamento.

Em 1998, quando foi criada a Refer (por separação da CP), havia mais de 900 guardas de passagem de nível. Em 17 anos reduziram-se 90% destas profissionais.

Um ritmo acelerado tendo em conta que em 1961 havia 1646 mulheres a guardar as passagens de nível. Porém, nessa altura a rede ferroviária era quase o dobro da de hoje. 

Num sector onde imperam regulamentos rígidos que devem ser rigorosamente cumpridos, podem parecer ridículas algumas das normas ainda em vigor.

Mas a verdade é que as guardas de passagem de nível devem apresentar-se sempre devidamente fardadas (uma bata amarela que permite uma fácil visualização) e munidas de uma corneta, a caixa dos petardos e uma bandeira (ou lanterna se for de noite).

A corneta tinha utilidade para afastar animais junto à linha e para avisar pessoas e condutores mais desprevenidos. Os petardos, que se colocam sobre o carril, são o último recurso para avisar o comboio de que algo correu mal naquela passagem de nível ou nas suas imediações.

Se houver um obstáculo na linha (um carro avariado, um animal tresmalhado, uma queda de árvore ou de um muro) a guarda deve dirigir-se rapidamente para o lado donde espera o próximo comboio, até uma distância de 500 metros, e colocar os petardos enganchados sobre os carris. A passagem dos rodados do comboio provoca uma explosão cujo ruído serve de alerta ao maquinista. Nestas circunstâncias o regulamento da Refer é claro: “o maquinista deve imediatamente e sem hesitação, reduzir a velocidade por forma a cumprir o regime de marcha à vista”, isto é, preparado para parar a qualquer momento.

Por sua vez a bandeira ou a lanterna constituem mais um meio de mandar parar o comboio. O normal, porém, é que sirvam para assinalar via livre. Pode parecer irrelevante, mas a mulher que ergue a bandeira à passagem de um comboio - seja uma automotora regional ou um Alfa Pendular - transmite segurança ao maquinista.

Há, porém, que distinguir entre as guardas que trabalham em linhas secundárias, onde a exploração está dependente unicamente de meios humanos, das que operam em passagens de nível automatizadas das linhas do Norte e da Cintura. Estas últimas constituem uma redundância à segurança, uma vez que as barreiras se fecham automaticamente.

Uma redundância que não é despicienda. “Temos a percepção de que a presença física da guarda pode constituir uma inibição à prática de infracções”, diz Susana Abrantes, da Refer. Isto porque é precisamente nestas passagens de nível que se registam menos acidentes.

No ano passado, mais de metade dos acidentes ocorreram em passagens de nível dotadas de protecção activa (cancelas, luzes e campainhas automáticas), o que denota que houve um claro desrespeito pela sinalização. Perante isto a Refer conclui que “a eficácia que advém da introdução de medidas de reforço da segurança depende sobretudo do comportamento dos cidadãos utilizadores das passagens de nível”.

Esta profissão é tão antiga como o próprio caminho-de-ferro. A definição apresentada pela Refer sobre as guardas de passagem de nível é tão actual hoje como há 150 anos atrás: “têm como acção fundamental garantir que o atravessamento à sua guarda se encontra livre de obstáculos no momento da passagem de uma circulação ferroviária”.

Um aspecto curioso é que nos primórdios das linhas férreas, as guardas de passagem de nível não tinham que abrir e fechar as cancelas quando vinha o comboio, mas sim quando aparecia um automóvel ou alguma carroça.

No século XIX os veículos rodoviários a motor eram uma raridade e por isso o normal era a passagem de nível estar fechada. Quando vinha um carro, a guarda sabia os horários dos comboios e abria ou não a cancela de acordo com o momento.

Se um comboio se atrasasse, não havia maneira de comunicar com a guarda que, para todos os efeitos, era a responsável pela segurança do local. E de todas a pessoas. Na noite de 4 para 5 de Outubro de 1910 o rei D. Manuel e a sua comitiva, em fuga para Mafra, teve de parar na passagem de nível para que a guarda abrisse as cancelas, uma vez que nessa época esse era ainda o procedimento habitual. O episódio é contado ao PÚBLICO pelo bisneto da guarda desse dia.

Mais tarde instalaram-se sistemas eléctricos que emitiam sinais sobre a saída do comboio da estação anterior. O passo seguinte foi o telefone – uma raridade para a época – para informar com mais precisão sobre o tráfego ferroviário.

Não deixa de ser curioso que uma profissão tão humilde se tenha caracterizado, há cem anos, por coexistir com a tecnologia mais avançada da época: a electricidade e o telefone.

Voltemos ao século XXI. Em algumas zonas os petardos que se colocavam na linha, em caso de urgência, foram substituídos por um sistema rádio-solo através do qual a guarda de passagem de nível emite um sinal de alarme aos comboios que circulam nas proximidades.

Ana Paula Fernandes já o usou várias vezes e salvou vidas. Está colocada há 28 anos numa passagem de nível em Ribeira de Santarém. Uma zona rural onde o trânsito de máquinas agrícolas é frequente. Mais de uma vez apanhou grandes sustos a ver tractores avariarem na travessia da via férrea. Às vezes, são os nervos do tractorista, que deixa a máquina ir abaixo e fica incapaz de retomar a marcha, deixando o veículo parado em plena via férrea.

A intervenção de Ana Paula Fernandes já evitou males maiores ao comunicar com os maquinistas que, alertados, acabam por parar na passagem de nível, evitando o embate.

“É assim de três de em três semanas. Das zero às oito, das oito às quatro e das quatro à meia-noite”, conta a ferroviária. Vinte e oito anos na mesma passagem de nível. O pior é o turno da noite, sobretudo nas noites frias de Inverno, numa zona em que humidade se entranha pelos ossos. A guardiã dos comboios não pode pregar olho. E aguenta o turno, recolhida numa caseta com três metros por três metros, da qual sai regularmente para fechar e abrir as cancelas.

Em três décadas nota que as pessoas são hoje mais intolerantes do que antigamente. O seu maior problema é a incompreensão, a impaciência e a impertinência dos condutores, que se queixam violentamente do tempo em que estão parados à espera.

A mulher que zela pela sua segurança é considerada um estorvo. “As pessoas não percebem que às vezes depois de um comboio vem outro e não dá tempo para abrir logo a cancela. E que até chega a haver quatro comboios seguidos sem que dê intervalo para as deixar passar”, conta Ana Paula Fernandes, que se queixa de já ter sido agredida verbalmente.

As 99 mulheres que trabalham à beira da via férrea podem estar em sítios ermos e isolados, ou em zonas povoadas onde conhecem os utilizadores da passagem de nível. A sua função não se limita a desencadear um conjunto de acções quase que mecânicas. Elas são também confidentes, conselheiras, vizinhas. A convivência diária com os utilizadores permite-lhes conhecer o seu estado de alma.

Que o diga Maria Silva, em serviço na zona de Ourém ao aperceber-se do comportamento suspeito de um utilizador habitual da sua passagem de nível. Ao tentar meter conversa com ele, as suas suspeitas adensaram-se e antevendo estar perante uma tentativa de suicídio, contactou com as estações colaterais para que fossem avisados os maquinistas dos comboios que circulavam naquele troço.

Os seus receios eram fundados e a sua acção acabou por frustrar aquele acto desesperado pois, avisado, o maquinista parou o comboio a tempo.

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