"O corpo diz-me que tenho saudades”, declarou a minha filha. Que pai fica imune a lirismo deste, dito por uma criança de quatro anos? Eu, como é óbvio. Pois trata-se de lirismo intrujão, motivado pela vontade de matar o vício de chuchas, que ela abandonou por sua própria vontade há menos de uma semana. É formulação poética que emana da adição. Impressionante, a maturidade que a ressaca confere a um cotomiço. O seu mini-corpo está mesmo a reagir à privação. Ontem apanhei-a a chuchar num pneu de bicicleta. A minha filha está agarrada à borracha.
Entretanto, porta-se como uma arrumadora: finge que me ajuda a arrumar qualquer coisa que eu já esteja a arrumar sozinho, e no fim exige uma chucha. Expliquei-lhe várias vezes que já não há chuchas porque ela cedeu à pressão social de adultos desconhecidos com vícios aberrantes, mas que implicam com crianças por usarem chucha, e deu-as todas à Fada das Chuchas, que deixou uma caixa de Lego em troca.
A Fada das Chuchas é responsável por recolher as chuchas que as crianças deixam de usar, trocando-as por um presente. É uma espécie de Fada dos Dentes, mas sem liquidez. Enquanto a Fada dos Dentes tem verba para monetizar marfim mirim, a Fada das Chuchas permuta chuchas por brindes. A Fada dos Dentes é uma capitalista e a Fada das Chuchas é uma hippie da Feira da Ladra. Quer dizer, tecnicamente, a Fada dos Dentes não é capitalista, é rentista. Foi-lhe atribuído um monopólio, provavelmente por ajuste directo, e agora é só arrecadar. Não há risco, porque mesmo sem investimento os dentes acabam sempre por cair. Já a abdicação das chuchas depende da vontade das crianças. O que faz da Fada das Chuchas uma criatura mágica de negócios com maior pendor comercial.
Neste momento, é também a fada preferida da minha filha. Todas as noites tenho de inventar que a Fada das Chuchas encontrou mais uma chucha no carro, ou no bolso do casaco, ou onde quer que seja, para justificar outra caixa de Lego. É a única maneira de acalmar os suores frios da miúda, na hora de deitar. Os Lego são a metadona das chuchas. Com isto, a Fada das Chuchas já ultrapassou em popularidade a Sininho, a Fada Madrinha da Cinderela e todo o elenco das Winx.
Já percebi que o dinheiro que poupo no aparelho dos dentes que não vai usar na adolescência acaba por ser gasto em presentes da Fada das Chuchas. É mais caro o desmame dos Lego do que o desmame das chuchas.
Por isso é que chamei a minha filha para lhe falar dos 12 passos. Já consegui que aprendesse a oração usada pelos Alcoólicos Anónimos. Mais ou menos. “Senhor, dá-me a serenidade para aceitar aquilo que não posso mudar, dá-me a coragem para mudar o que me for possível e dá-me um presente, de preferência Lego.”
Não estou muito confiante. O problema são as más companhias. A minha filha só se dá com outras crianças, justamente a população de risco afectada pelo flagelo do abuso de chuchas. Não tem uma única amiga que não use ou tenha usado chuchas. Quero afastá-la destas más influências e estou a pensar tirá-la da creche e pô-la num lar de 3ª idade. Pode ser que substitua as chuchas pelo bingo.
