“Nunca vemos tudo o que está lá”
Frederick Wiseman, o "cineasta das instituições", encontrou na National Gallery um mundo que lhe faltava filmar: o museu. E também uma história que dá bem conta das limitações do olhar, qualquer que ele seja, como nos conta nesta entrevista em que desvenda um método e uma ética de trabalho.
National Gallery, o documentário do realizador norte-americano sobre o museu britânico – a concretização de um antigo desejo do “cineasta das instituições” de retratar o que mexe dentro de um museu –, não é dos seus filmes mais bem recebidos. Demasiada conversa, pouca pintura, obstam alguns – sentimento de perda em relação ao sagrado?
Acrescentam: é um filme feito com talking heads. As reuniões do staff em que se debatem os conflitos sobre a vocação de um museu (deve formar elites ou deve alinhar com a democratização de gosto e procurar blockbusters?), as explicações das técnicas de restauro e as lições de história de arte frente a um quadro, querendo fixar narrativa...
Mas... e o silêncio, e o silêncio da pintura? E o olhar das telas, que parecem comentar essa nossa necessidade de fixar narrativas, como se as figuras nos interpelassem em silêncio? Esse olhar, dos quadros, é o olhar de Frederick Wiseman – e basta estar ao pé dele para sentir uma espécie de reserva fundamental, um convite à suspensão de qualquer narrativa totalitária. National Gallery não é então um ruidoso filme de palavras. É um silencioso filme de olhares. Não nos ensina a olhar para um quadro. Ensina-nos que ver é ter a consciência de uma perda.
Uma provocação, citando críticas ao seu filme: há demasiada conversa, escreveram alguns referindo-se às cenas em que os quadros são explicados aos visitantes, e pouca pintura. Até concordo. Mas é isso que interessa em National Gallery. Como responderia a esses comentários?
Não teria de responder. De qualquer maneira, acho a conversa necessária para explorar os assuntos que encontrei no material que filmei. Mas se achasse necessário responder, diria que não concordo com o comentário. O filme é sobre a relação das pessoas com os quadros – pelo menos é um dos temas. Outro é a comparação das formas de contar uma história. As diferentes maneiras de contar uma história, num quadro, num filme, na dança, num poema, no teatro. É também sobre diferentes maneiras de olhar: as pessoas olham para os quadros em que as figuras pintadas estão a olhar para os visitantes do museu e as pessoas que estão a ver o filme estão a olhar para ambos.
Sobre essa relação entre pintura e cinema... alguém da National Gallery, frente a um quadro, elabora sobre como deveria ter sido na Idade Média, com as imagens religiosas, bruxuleantes, animadas pelas luzes das velas. Deve ter sido assim no começo do cinema, fantasmas...
... sim, e ainda se mantém um aspecto religioso quando se fala de filmes, tem o mesmo tipo de mistificação da religião e o mesmo tipo de incompreensibilidade.
Perguntava-lhe sobre as sequências de conversa sobre a pintura porque creio detectar um ponto de vista irónico em National Gallery, embora não saiba qual é a sua relação com a ironia...
Gosto muito da ironia. É algo de que me sinto próximo.
Confirma-se então. Numa das sequências, uma guia fala, fala, como se desvendasse segredos do quadro, e nesse momento você corta para o olhar da figura pintada, que olha para nós. Como um comentário silencioso: da figura e, finalmente, seu. Estamos sempre a perder coisas quando olhamos. A experiência de ver é sempre perder.
É essa a experiência de ver, nunca vemos tudo o que está lá – ou nunca ouvimos tudo o que está lá. E sim, há ironia em National Gallery.
Faz filmes sobre instituições. Como é que as instituições lidam com isso?
Não aceito encomendas. Todos os filmes partem de ideias minhas. Os filmes pertencem-me, sou eu que procuro o dinheiro e nunca aceito dinheiro das instituições que são o objecto dos filmes.
Entra com a sua câmara em lugares que outros não entram...
Digo-lhe o meu grande segredo: peço para entrar.
E quando lhe dizem que sim, ficam à espera de um certo resultado?
Não faço ideia, teria de lhes perguntar. Durante o processo não tenho grande ligação com a entidade que me autorizou. Nick Penny, director da National Gallery, deu-me autorização. Nas 12 semanas em que estive lá, devo tê-lo visto uma vez por semana. Havia uma reunião semanal com o comité executivo, ele estava lá e limitava-se a dizer: “vá em frente, faça”. Toda a gente sabia que eu ia aparecer. Todos os departamentos tinham de dar a sua aprovação, de outra forma eu não poderia fazer o filme. Mas, como dizia, ninguém da National Gallery estava comigo enquanto trabalhava. Havia guardas dos museus em todas as salas da galeria, mas o trabalho deles não era vigiarem-me, era fazer o que fazem todos os dias. Eu e a equipa tínhamos passes, podíamos entrar onde quiséssemos. O que é uma condição que ponho antes de fazer um filme.
O que é surpreendente, porque há uma narrativa de fechamento, de protecção em relação ao exterior, nas instituições. É essa a cultura, e você consegue o que quer.
Se calhar elas estão demasiado ocupadas com as minhas grandes orelhas, se calhar são uma distracção.
No fim querem ver o que filmou?
Nunca mostro o que filmei antes do filme acabado. Ninguém da National Gallery viu um fotograma do filme antes de estar completado, montado e misturado. No final, e como um gesto de cortesia, mostrei o filme. Deixo sempre claro desde o início, e por escrito, que tenho controlo absoluto sobre a montagem.
Mais complexo ainda: como é que, penetrando reuniões que são invisíveis para o público, consegue que as pessoas que estão reunidas a debater assuntos internos percam a consciência de que estão ali uma câmara e um intruso?
A única coisa que me lembro de fazer é agir de forma natural. A pior coisa que se pode dizer é: “Não olhem para a câmara, esqueçam-se de nós.” É nesse momento que as pessoas se tornam autoconscientes. Tem sido sempre essa a minha experiência: as pessoas estão a trabalhar nas suas coisas e ignoram-nos. Nas 12 semanas de rodagem de National Gallery ninguém se recusou a ser filmado, e isso é uma coisa comum. Muito raramente alguém olha para a câmara. Não percebo porquê, realmente. Tento apresentar-me de maneira não ameaçadora. A equipa é pequena: um microfone, um gravador, sem luzes, só ali a passear. A explicação nem é que as pessoas se habituam à minha presença, porque não têm tempo para isso, é muito rápido, começamos logo a filmar. Não, não sei como explicar. As explicações possíveis: indiferença, vaidade, narcisismo... Poderá haver outro elemento decisivo: as pessoas não são suficientemente boas a representar para mudarem rapidamente de comportamento. Se não querem ser filmadas vão-se embora, mas se concordaram continuam com as suas vidas. 99,9 por cento das pessoas não são bons actores, por isso não podem mudar de comportamento. Se eu perceber que a pessoa está a “interpretar”, paro de filmar; se só percebo isso na montagem, não utilizo o material. Mas é tão raro isso acontecer que se torna insignificante.
Não deixa de acontecer, no entanto, nos seus filmes, perguntarmo-nos: “como é que ele fez isto, como é que foi possível?”. São perguntas que se costumam fazer nos filmes de efeitos especiais, mas no seu caso o espanto acontece perante as relações entre as pessoas. E perante a ambiguidade gerada pela sua presença ali. Em que lugar está Frederick Wiseman, o que é que ele pensa sobre o que se está a passar? O director da National Gallery é um snob e um elitista? O que pensa Wiseman sobre ele? Mesmo que não o diga alto e bom som no filme, está a roubar pedaços às pessoas, não está?
É uma metáfora do que se passa, sim, mas roubamos com consentimento. As reuniões na National Gallery demoravam uma hora, uma hora e meia em tempo real. Vemos no filme seis, sete minutos, um condensado, Obviamente que faço escolhas. A minha abordagem não é jornalística, é a de romancista: o autor deixa ao leitor espaço para ele pensar como é a personagem através da escolha da acção que descreve ou do diálogo que inventa. Eu não invento diálogos, mas escolho-os, o que é semelhante. O meu ponto de vista é expresso de forma indirecta, por aquilo que escolho para sintetizar as sequências. Ou seja, por aquilo que escolho da experiência original e pela ordem em que coloco essas escolhas. O filme funciona em duas pistas: uma literal, o que alguém diz a alguém, e outro abstracto, metafórico, as implicações do que alguém disse a alguém. Um filme é a relação entre esses dois níveis. Não escrevo o diálogo, não tenho a amplitude de possibilidades de um romancista; estou limitado pelo que tenho nos rushes – neste caso foram 170 horas, por isso posso escolher.
Assistiu a reuniões sem a câmara, ao jeito de repérage, ou esse não é o seu método?
Não. Passei meio dia na National Gallery antes de começar a filmar. A andar de um lado para o outro para ter o sentido da geografia do local. À medida que ia encontrando pessoas nos departamentos, perguntava se tinham reuniões de pessoal, a que dias e com que periodicidade. Pedi para assistir, e foi isso que fiz uma vez por semana nas 12 em que estive lá. Estabeleci uma rede de informadores – nada a ver com a rede das polícias secretas – porque as pessoas do local sabem melhor do que qualquer outra do que ali se passa. E pedi que me avisassem sempre que alguma coisa interessante se passasse, que me telefonassem para o telemóvel. Era isso o que faziam: “Amanhã ao meio dia vem um grupo de turistas holandeses”... O que quer que fosse.
O que acontece quando não gosta da pessoa que está a filmar? Já lhe aconteceu...
Temos de ser justos com as pessoas que filmamos, o que quer que isso queira dizer – não quer dizer, certamente, sermos objectivos. Quando não se gosta de alguém, não fazemos um grande plano a mostrar o pior perfil possível. O tipo de juízo que faço é sempre se é uma boa cena ou não. 50 por cento do gesto de fazer os filmes que faço é analisar, na montagem, o comportamento humano. Nada a ver com a técnica de realização, tudo a ver com perguntar: porquê? Porque é que as pessoas usam estas ou aquelas palavras, porque é que pedem um cigarro, porque é que fazem uma pausa, porque é que gesticulam, porque é que se inclinam para a frente? Não digo que a minha análise esteja certa, mas enquanto não achar que compreendo o que se está a passar, não consigo fazer escolhas, não posso editar o material. A tarefa inicial perante o que filmei é decidir o que é importante no que se está a passar; é perceber que aquela pessoa está a ser irónica ou a contar uma piada, que aquela outra está a mudar de assunto, que a outra não fala de maneira muito precisa.
Há dois anos fez At Berkeley, um filme especialmente emotivo. Certamente haverá histórias mais próximas da sua história privada, que o emocionam pessoalmente mais do que outras. O que é que o faz interessar por um assunto, qual foi o link para a National Gallery?
Decidir que se faz um filme sobre Berkeley ou sobre a National Gallery não é uma jogada de risco porque se pode assumir que há sempre coisas a acontecer. E que se tivermos sorte e nos demorarmos o tempo suficiente vamos conseguir arranjar um punhado de boas sequências. Mas o modelo é de facto Las Vegas: atiramos os dados quando decidimos fazer um filme sobre um lugar, não sabemos o que vamos encontrar. Não sei, de antemão, que o curador de uma exposição vai mostrar aos turistas um raio X de um quadro de Rembrandt. Só sei que vai haver um encontro e aquilo aconteceu durante esse encontro.
Quando se diz “Frederick Wiseman é o realizador das instituições”... deve-se imaginar um quadro com uma série de instituições e o realizador a riscar aquelas que já “fez” e a olhar para as que lhe faltam “fazer”?
Estou tão interessado em fazer filmes hoje como estava quando comecei há 50 anos. É divertido, é interessante, é absorvente. Em 170 horas de material da National Gallery tenho de encontrar um filme, é aquele cliché do escultor a esculpir a estátua. Posso trabalhar sete dias por semana durante três ou quatro meses, desde que durma sete horas por dia. “Realizador das instituições”? É só fazer filmes... Na verdade o que faço é usar a mesma técnica para explorar ideias diferentes.
Um dia acorda e pensa: “National Gallery, falta-me a National Gallery”?
Sim, é um bocado assim. Há muito tempo que queria fazer um filme sobre um museu. Nos anos 80, contactei o Metropolitan de Nova Iorque, mas cobrava dinheiro. Pus a ideia de lado. No Inverno de 2012 estava a esquiar e conheci uma mulher da National Gallery, que conhecia os meus filmes e me aliciou para a ideia. Queria há muito fazer um filme sobre um museu, não especialmente a National Gallery, que conhecia apenas como turista em Londres. Ela apresentou-me ao director. Tivemos uma primeira reunião, depois uma reunião com os vários curadores, mostrei-lhes alguns dos meus filmes, eles gostaram e disseram OK.
O que é que lhes mostrou?
Sequências de La Danse (2009, sobre o Ballet de l’Opéra National de Paris), de La Comédie-Française ou L’amour joué (1996), de Welfare (1975), de Juvenile Court (1973), alguma coisa de Titicut Follies (1967)... e algo de High School (1968). Queria dar-lhes uma visão o mais ampla possível do meu trabalho porque não quereria colocar-me numa posição em que alguém se pudesse queixar: “Você não nos disse...”
Precisamente: cada filme fixa, mesmo que involuntariamente, um retrato de alguém. No caso dos seus filmes, então, os retratados não têm controlo sobre o resultado. Acontece haver reacções de choque?
Uma das razões por que se pode continuar a fazer filmes da forma que faço é que as pessoas filmadas não se vêem da mesma forma que os espectadores as vêem. Todos pensamos que somos decentes. Não vemos necessariamente a mesma coisa no nosso comportamento que outra pessoa pode ver. Vou dar um exemplo extremo que ilustra este problema. Fiz um filme em 1968 sobre a polícia de Kansas City [Law and Order]. Para poder fazer uma prisão por prostituição, a polícia tinha de apanhar alguém em flagrante delito. O polícia da Brigada de Costumes apanhou uma mulher, levou-a para o hotel, despiu-se, e à ultima hora disse: “Sou um agente da Brigada de Costumes, está presa". Desceu com ela as escadas do hotel, mas ela deitou-o abaixo e fugiu. Ele pegou no walkie-talkie e chamou o carro da brigada. Nós estávamos no carro. Fomos para o hotel. O empregado de hotel disse que ela se tinha escondido na cave. Não havia luz na cave, foi das poucas vezes em que utilizei luz artificial. Os polícias encontraram-na escondida debaixo da mobília e começámos a filmar; o polícia começou a estrangulá-la. E ela disse ao outro que ele lhe agarrara os braços: “Ele estava a tentar estrangular-me”. O outro polícia: “Nada disso, estás a imaginar coisas”. E disse-lhe ainda: “Se queres ser prostituta é contigo, mas a partir do momento em que és apanhada, alinha connosco, não resistas, vem à esquadra, tiramos-te o retrato, as impressões digitais, pagas uma multa de 50 dólares e voltas à rua em meia hora. Mas não te metas com os nossos rapazes". Pode argumentar-se que eles a teriam matado se não estivéssemos ali. Mas não acho que seja isso, acho que eles acharam que o que se passava entre eles era... normal. É isso o que se passa com todos nós em geral.