"Vestido viral” revela complexidade da percepção das cores pelo cérebro humano

O caso da foto de uma peça de roupa que há uns meses provocou um “cisma” mundial nas redes sociais – dividindo leigos, celebridades e especialistas – foi agora esmiuçado numa revista científica.

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A foto do vestido publicada nas redes sociais Cortesia de Cecilia Bleasdale
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Imagens manipuladas para todos poderem ver as duas "versões" do vestido DR

Já agora, o vestido é mesmo preto e azul (mais precisamente, azul eléctrico com aplicações de renda preta), como se pode ver na loja online da empresa britânica Roman Originals. Mas quando olhamos para a fotografia dele que foi inicialmente publicada na rede social Tumblr, nem todos vemos essas cores. Porém, ficamos absolutamente convencidos de estar a ver as cores reais – o que explica sem dúvida a acesa controvérsia mundial a que o vestido deu origem há uns meses.

Tudo começou quando uma britânica, cuja filha ia casar, enviou por telemóvel à futura noiva uma foto do vestido que tencionava vestir na festa. Como explicava o tablóide britânico Daily Mail a 27 de Fevereiro, a “discórdia” surgiu logo ali, quando a noiva mostrou a foto do vestido ao noivo e eles não se conseguiram pôr de acordo sobre as cores da peça.

A noiva mostrou então a foto a uma amiga, que por sua vez a mostrou a um grupo de amigos, que ficaram igualmente divididos. E foi assim que o vestido chegou às redes sociais: como um pedido de ajuda desse grupo de amigos para resolver o diferendo. A explosão mediática que se seguiu já fez história.

Desde o início, houve explicações por parte de cientistas e médicos que iam desde problemas na retina dos que viam uma dada combinação de cores e não a outra até à forma como o nosso cérebro processa a informação visual que vem dos olhos. De facto, é nesta segunda opção que reside a explicação do fenómeno. Em particular, não se trata de um defeito da visão como o daltonismo, uma vez que muitas das pessoas que atribuem cores “falsas” (branco e dourado) ao vestido possuem uma visão das cores perfeitamente normal.

Acontece que é o nosso cérebro – e não os nossos olhos – que constrói a nossa percepção das cores do mundo que nos rodeia – isto é, a nossa experiência subjectiva das cores. Os olhos fornecem-nos a informação óptica em bruto vinda do exterior, mas é ao nível do córtex visual que essa informação é processada. E o nosso cérebro, com base na luminosidade ambiente e nos comprimentos de onda da luz reflectida pelos objectos [que definem a sua cor intrínseca], “deduz” as cores daquilo que vemos.

Mas às vezes é possível enganar o cérebro – e não só em relação às cores – e os especialistas da visão sabem-no há muito tempo. No que respeita às cores, existem aliás diversas imagens que criam ilusões cromáticas nas quais, dependendo da luminosidade, a mesma cor parece diferente. Contudo, nestes casos “convencionais”, somos todos sujeitos à mesma ilusão: não há discordâncias, não há experiências subjectivas variáveis (excepto em caso de patologia). Dois exemplos de ilusão cromática em função da luminosidade ambiente foram publicados há uns meses pela revista New Scientist.

Pelo contrário, a ilusão criada pela imagem do vestido depende, quanto a ela, muito mais da subjectividade individual de cada observador. E foi essa característica fortuita da imagem que apanhou os especialistas desprevenidos. “O que torna a fotografia d’O Vestido tão alucinante é que é a primeira vez que uma única e mesma imagem foi vista por tantas pessoas como sendo de cores diferentes”, diz Bevil Conway, neurocientista do MIT (Instituto de Tecnologia do Massachusetts, EUA) e líder de um dos estudos agora publicados, em comunicado da Current Biology.

A equipa de Conway mostrou a foto viral do vestido a 1400 voluntários, 300 dos quais nunca a tinham visto, confirmando a existência de diferenças impressionantes na percepção das pessoas: 60% viram as cores reais, enquanto 30% viram as cores “falsas”. E os mesmos cientistas descobriram ainda que 11% dos participantes viam o vestido azul e castanho e 2% viam outras combinações de cores.

Segundo a equipa do psicólogo Karl Gegenfurtner, da Universidade de Giessen (Alemanha), autora de outro dos estudos agora publicados (que contou com apenas 15 participantes), o leque de cores observadas no vestido é na realidade um contínuo. Este cientista faz notar ainda que o Dressgate (nome pelo qual o fenómeno viral ficou conhecido) terá sido desencadeado por diferenças na forma como o cérebro humano interpreta a iluminação do vestido na foto. Uma interpretação, já agora, moldada por milhões de anos de evolução das espécies à luz – e à sombra – do Sol.

Michael Webster, especialista em ciências cognitivas da Universidade do Nevada (EUA) e colegas, autores do terceiro estudo (realizado junto de mais de 150 pessoas), chegam a uma conclusão da mesma ordem: “A percepção das cores coloca dificílimos desafios [ao cérebro], porque o espectro da luz que atinge os olhos depende ao mesmo tempo do espectro da luz reflectida pelo objecto [que lhe dá a sua cor] e do da fonte de iluminação”, escrevem na Current Biology. Dito de outra forma, o nosso sistema visual está constantemente de “calcular” as cores “reais” dos objectos com base em pressupostos de luminosidade, subtraindo a componente cromática vinda da iluminação ambiente.

Por isso, quando observamos um objecto à luz directa do Sol, como a cor dominante dessa luz é amarela, o nosso cérebro corrige esse “enviesamento” e a nossa experiência visual subjectiva é a de uma cor mais escura. Pelo contrário, quando um objecto está à sombra, o tom dominante da luz que incide sobre ele é azul (a cor do céu) e vemos uma cor mais clara. É aliás graças a esta incrível capacidade do cérebro que nossa percepção das cores do mundo não mudam radicalmente quando a luminosidade varia ao longo do dia…

Tudo indica ser esse o segredo da inédita ilusão produzida pelo vestido: um “erro” de compensação perceptual por parte do cérebro humano devido ao facto de o vestido ser azul, precisamente uma das cores dominantes da luz do dia. No fundo, o cérebro de algumas pessoas pressupõe que o vestido na foto está iluminado em luz directa (e assim, vê um vestido azul e preto), enquanto o cérebro de outros (incluindo o da autora deste texto) decide à partida que o vestido está a contraluz, à sombra – vendo-o portanto branco e dourado.

Como resume simplesmente Webster, a explicação do fenómeno parece portanto residir no facto de, na imagem, o cérebro das pessoas que vêem o vestido branco e dourado estar a confundir a sua cor azul com uma hipotética fonte de luz azul. Aliás, segundo ele, é muito provável que o vestido não se teria tornado viral se tivesse sido verde e preto ou cor de laranja e preto.

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