A cópia privada
Diminuir a proteção da criação humana é regredir na conquista histórica de cinco séculos que levou ao reconhecimento do valor da propriedade intelectual.
Em parte significativa do mundo, ninguém põe em causa os direitos exclusivos sobre determinado bem por parte do seu proprietário. Seja a propriedade obtida, legitimamente, por compra, doação, herança ou legado, não nos ocorre dizer, por exemplo, que o dono de uma casa deve deixar a porta aberta para todos os que queiram entrar, que o dono de um carro o deve partilhar com todos os vizinhos ou o dono de um computador torná-lo acessível a toda a comunidade. Podemos dizer que um proprietário de dado bem, se assim o quiser, poderá partilhá-lo com terceiros, mas no conceito social e jurídico de propriedade em vigor, essa partilha, salvo estado de exceção ou necessidade, decorre de uma vontade do proprietário, que ao expressá-la, cria uma exceção ao seu próprio direito. O direito de propriedade é um direito pleno — o substantivo propriedade deriva do adjetivo latino proprius e significa “o que é de um indivíduo específico ou de um objeto específico, sendo apenas seu”, favorecendo a ideia e o valor de “objeto que pertence a alguém de modo exclusivo”[1]. Desde muito cedo o direito romano distinguiu, propriedade e posse. Ou seja, sendo alguém proprietário de dado objeto, pode haver um terceiro que tem a sua posse (mantendo, de fato, alguma coisa em seu poder[2]), porque legítima (por empréstimo, por exemplo) ou ilegitimamente (por furto ou roubo, por exemplo) acedeu a um bem de que não é proprietário.
O conceito de propriedade não é uma ideia co-natural ao homem. De fato, houve tempos onde dadas comunidades partilhavam os bens sem que sobre os mesmos recaísse um direito exclusivo. E ainda hoje em dadas comunidades aborígenes tal é possível encontrar. Mas o modelo dominante das sociedades contemporâneas utiliza o conceito de propriedade enquanto direito exclusivo (apesar de complexo e com componentes de utilidade social) como conceito basilar da organização política, económica e social.
Durante a Idade Média e Renascimento foram evoluindo as ideias e valores em torno do reconhecimento dos direitos dos escritores e artistas e dos direitos de reprodução de obras, matéria que se tornou mais premente com a difusão tipográfica no século XV. O fim do século XIX fixou importantes convenções internacionais relativas a direitos de autor e de propriedade industrial, nomeadamente, a Convenção de Paris de 1883 (essencialmente sobre a propriedade industrial e com 173 países subscritores atuais) e a Convenção de Berna de 1886 (essencialmente sobre a propriedade autoral e com 165 países subscritores atuais). Ao longo do século XX, a maior parte dos países do mundo aderiram a estas convenções e elas vinculam todos os países aderentes à Organização Mundial do Comércio e os países da União Europeia.
A construção de uma ideia de propriedade relativa à criação literária, artística e científica (e que inclui hoje os conteúdos jornalísticos originais) corresponde à afirmação de uma ideia de Homem durante o Renascimento e a Idade Moderna e que a Idade Contemporânea consagrou na sequência dos horrores do período que começa com a I Guerra Mundial e se conclui com o fim da II Guerra Mundial, através da Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Dezembro de 1948, que diz no seu artigo 17º: 1. Toda a pessoa, individual ou colectivamente, tem direito à propriedade; 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade. E no seu artigo 27º: 1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam. 2. Todos têm direito à protecção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.
A segunda metade do século XX foi também a do aumento exponencial da produção livreira e jornalística, do aumento de circulação de pessoas e bens, do aumento das facilidades de transportes e das tecnologias de informação e através delas, da liberalização na veiculação de conteúdos. Neste último domínio, desde os primeiros passos dados nos anos 60 do século passado para a criação da Internet até à implementação da World Wide Web no início dos anos 90 e ao incrível movimento de mudança que esta ferramenta produziu no modo como o mundo se olha e se organiza hoje, deram-se passos tão rápidos, seja a nível tecnológico, seja a nível comportamental, que a maior parte de nós tem dificuldade de pensar como era a vida antes do recurso a redes digitais.
Os comportamentos pessoais e sociais na sociedade digital obrigam a uma necessária revisitação de conceitos basilares de organização política, económica e social. O que queremos manter? O que queremos solidificar? O que queremos mudar?
A questão da propriedade de conteúdos na Internet e nas redes digitais é uma questão central. Um estudo de 2013 produzido pelo Observatório Europeu das Infrações aos Direitos de Propriedade Intelectual (DPI) e pelo Instituto Europeu de Patentes afirma que os sectores com utilização intensiva de DPI representam cerca de 39% do PIB da UE (cerca de 4.7 biliões de Euros por ano) e até 35% dos postos de trabalho (tendo em conta empregos indiretos).
Bem se percebe a importância desta matéria. Quem deve controlar os conteúdos criados na economia digital? Os detentores dos sistemas de distribuição? Mas hoje os detentores dos sistemas de distribuição não são também muitas vezes detentores de sistemas de venda de conteúdos? Mas hoje esses mesmos detentores não são também os principais detentores dos meios de veiculação de publicidade?
Pergunta-se: a sociedade desejável é aquela em que quem, à escala global ou regional controla os dispositivos físicos de distribuição de informação e conteúdos (texto, imagem, imagem em movimento, som através de sistemas de cabos, satélites, difusores terrestres ou dispositivos portáteis ou de mesa), os dispositivos de venda de conteúdos e os dispositivos de publicidade detém a propriedade exclusiva dos conteúdos? Tal ideia é contrária aos princípios da concorrência, da liberdade de informação e do pluralismo.
Querer retirar a autores e artistas a possibilidade de um controlo da sua propriedade sobre os conteúdos por eles gerados no sistema de distribuição da remuneração da cadeia de valor económico da criação e gestão de conteúdos é contribuir para uma sociedade menos plural e para a crescente concentração do poder de informar e formar nas mãos de poucos.
Dizer que ninguém defende isso e que a cópia privada vai para lá da remuneração legítima dos direitos de autores e artistas é uma forma possível mas atrevo-me a dizer, parcial, de ver o problema (a ideia associada a este argumento é que a cópia privada, sendo uma exceção ao direito de autor, não corresponde a um dano para o mesmo). Pergunta-se, se assim fosse, teria a União Europeia através de diretiva de 2001 sobre o direito de autor na sociedade da informação previsto a exceção da cópia privada desde que os titulares de direitos obtenham uma compensação equitativa? A cópia privada, enquanto reprodução feita por quem compra dada obra legalmente, é uma exceção ao direito exclusivo de propriedade de um autor ou artista sobre a sua obra — e por isso a cópia privada nada tem a ver com o flagelo da pirataria, em que se reproduz ilegalmente obras protegidas. Todos os autores e artistas têm interesse a que as suas obras sejam compradas e usufruídas. Mas todos têm direito a ser remunerados pelas suas criações enquanto sua propriedade, pois as suas criações são não só o fruto do seu trabalho mas, tal como acontece na descoberta científica ou industrial, uma forma específica de criação reconhecida e assimilada à formação de um direito de propriedade. Diminuir ou desproteger a proteção da criação humana, hoje reconhecida como propriedade intelectual (procurando, por exemplo, transformas artistas, escritores e jornalistas em meros prestadores de serviço, não reconhecendo o valor da originalidade das suas criações), é regredir na conquista histórica de cinco séculos que levou ao reconhecimento do valor da propriedade intelectual, transformando um aspeto essencial da vida contemporânea — o acesso e a pluralidade de conteúdos digitais — numa questão de distribuição e consumo em vez de se perceber que o que está em causa vai muito para lá disso — está em causa a defesa do estatuto da criação humana como elemento estatutário da condição humana e um modelo plural de sociedade.
Em Portugal, a transposição da diretiva de 2001 referida foi efetuada em 2004 e deixou de fora a compensação equitativa relativa a equipamentos digitais. Isso significa que desde 2004 até hoje os utilizadores beneficiaram de uma exceção que lhes permite efetuar cópias, sem que os titulares de direitos recebam a respetiva compensação relativa a cópias em dispositivos digitais.
A presente atualização da lei portuguesa vai de encontro do já previsto na larga maioria dos Estados europeus, precisamente no âmbito do mesmo quadro normativo (dos 28 estados-membros da União Europeia, 24 estabelecem uma compensação equitativa a favor dos titulares de direitos sendo que penas Chipre, Irlanda, Luxemburgo e Malta não preveem a exceção da cópia privada no seu ordenamento jurídico [3]). Estamos perante uma matéria que para além de constituir um compromisso do Programa do Governo é também vinculativa no contexto nacional e europeu face à transposição da diretiva de 2001 já referida.
Apesar de ter sido anunciado publicamente pela nova Comissão Europeia, que, no quadro da estratégia para o mercado único digital haverá necessidade de promover, com brevidade, uma revisão do enquadramento normativo desta matéria[4], importava proceder à atualização da legislação nacional aplicável, para garantir o equilíbrio de direitos e interesses legítimos em presença — criadores, importadores, distribuidores, consumidores. Deve ainda referir-se que, com o objetivo desta compensação ser de fato equitativa e não excessiva, previram-se montantes máximos e a revisão de montantes face à sua aplicação, no âmbito do texto da atualização legislativa, para garantir que nem se desprotege nem se compensa excessivamente.
Trata-se não só de compatibilizar a economia com a cultura como de promover condições equilibradas de concorrência no contexto europeu. De fato, e ao contrário de que por vezes se tem dito, por falta da atualização legislativa o mercado português de dispositivos digitais beneficiou de condições de mercado mais favoráveis face à maior parte dos parceiros europeus, onde a remuneração da cópia privada se aplica.
O número substancial das vendas de equipamentos e suportes deve-se à existência de obras autorais, quer para seu armazenamento quer para reprodução (a maior parte dos consumidores usa os dispositivos digitais para ver filmes, ouvir músicas, ler conteúdos noticiosos, trocar imagens, ler textos, independentemente de outras utilizações também existentes).
No que respeita ao principal elemento usado como argumento em toda a discussão em torno da atualização da lei da cópia privada contra a mesma — o aumento do custo de equipamentos no consumidor — não será necessário que o montante da compensação equitativa seja repercutido no mesmo, visto que os devedores da compensação equitativa são os fabricantes e os importadores dos equipamentos e não o consumidor final.
No que se refere à possibilidade de se adquirir equipamentos no estrangeiro mais baratos do que em Portugal, há que referir que nesses casos as tabelas existentes de compensação equitativa são já maioritariamente aplicadas a equipamentos digitais e com montantes superiores à lei portuguesa da cópia privada. Se, apesar disso, esses equipamentos forem mais baratos, deverão os consumidores perguntar-se o porquê.
O argumento usado contra esta atualização de que muitas utilizações típicas não se referem à cópia de conteúdos foi tomado em conta, pelo que os montantes de compensação aplicáveis não respeitam só a capacidades de armazenamento mas também às suas utilizações típicas.
Os montantes obtidos pela aplicação de tarifas de compensação equitativa são cobrados pela AGECOP, Associação para a Gestão da Cópia Privada (associação sem fins lucrativos e com estatuto de utilidade pública), a qual tem como associadas as organizações representativas dos autores, artistas, produtores, editores e livreiros.
Está prevista uma percentagem precisa para a divisão dos montantes pelas entidades associadas, as quais vão posteriormente distribui-los pelos respetivos titulares de direitos.
Nessa conformidade, o dinheiro vai ser entregue aos criadores, empresas nacionais e também, por via de acordos de reciprocidade, aos titulares de direitos autorais internacionais representados em Portugal.
Esta compensação permitirá garantir à fileira das indústrias culturais e criativas uma maior sustentabilidade e capacidade de investimento na criação de novas obras.
O diploma da cópia privada, depois do amplo trabalho de consultas, debate público e consensualização é articulado com a Lei das Entidades de Gestão Coletiva, que aumenta a transparência na distribuição e utilização de fundos por parte das entidades de gestão coletiva, também recentemente publicado — Lei n.º 26/2015 de 14 de abril — todos temos o direito de saber como a remuneração da cópia privada é aplicada.
A atualização da lei da cópia privada assegura a liberdade dos consumidores em reproduzir obras protegidas, remunera de forma equitativa os criadores pela utilização do seu trabalho, e apoia o investimento na criação de novas obras bem como o crescimento e a competitividade do nosso país no domínio criativo.
A criação de conteúdos é um dos domínios fundamentais das economias do século XXI. Garantir que os criadores de conteúdos têm um papel na cadeia de valor da sua distribuição não é um mero elemento de economia, trata-se de uma questão basilar do modelo de sociedade que queremos e do estatuto de dignidade da criação enquanto elemento distintivo da condição humana.
[1] Adaptado do artigo sobre propriedade de Giuliano Martignetti no Dicionário de Política de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, edição EnB/Dinalivro, Brasília, 2004.
[2] Idem.
[3] Tal informação pode ser consultada através do relatório produzido pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, em 2013, o qual reúne toda a informação sobre os sistemas de cópia privada existentes em 32 países, por sinal, entre os mais competitivos do mundo, e que demonstra que os valores enunciados para a atualização da lei da cópia privada em Portugal se encontram muito abaixo da média europeia.
[4] A Comissão Europeia anuncia a 06.05.2015 a sua estratégia para a criação do Mercado Único Digital, prevendo-se para o segundo semestre deste ano "uma nova proposta europeia para a reforma do regime de direitos de autor".
Secretário de Estado da Cultura