Música e arquitectura no Porto: uma relação saudável!
In Spiritum é um festival que convida o público a assistir a concertos de música erudita em espaços arquitectónicos de referência da cidade do Porto.
Os espaços arquitectónicos do Porto, pela sua riqueza e diversidade, são merecedores de uma estratégia cultural que promova a sua constante (re)descoberta. O Festival In Spiritum propõe a concretização deste objectivo através da realização de concertos em espaços emblemáticos da cidade, proporcionando ao público um encontro simultâneo com a música erudita e com os espaços arquitectónicos. A segunda edição do festival apresentou seis concertos em igual número de espaços, com a particularidade de alguns deles não servirem habitualmente de palco a concertos. A programação do festival incidiu na música antiga europeia, dando especial destaque a compositores ibéricos, mas também incluiu repertório de épocas e estilos mais recentes. Destaca-se ainda a realização do I Concurso Internacional de Composição Festival Internacional IN SPIRITUM que atribuiu o Prémio Joaquim Simões da Hora ao compositor brasileiro Daniel Bondaczuk Castro Lobo (n. 1984) pela sua obra Cantate Domino Canticum Novum, para os dois órgãos da Igreja dos Clérigos.
Apesar deste não ser o primeiro festival a levar a música erudita aos espaços arquitectónicos emblemáticos do Porto, a cidade carece ainda de propostas culturais desta natureza, contrastando assim com a maioria das grandes cidades europeias. Respondendo a esta necessidade o Festival In Spiritum é já uma aposta ganha, desejando-se a sua continuidade!
1. O Tropos Ensemble, constituído pelos pianistas Luca Chiantore e David Ortolà, propôs uma abordagem à música de três compositores pianistas – Beethoven, Mussorgsky e Debussy – baseada no conceito de intertextualidade. Este concerto a dois pianos consistiu na mistura de fragmentos ou obras originais com novos materiais compostos pelo duo, procurando criar um discurso musical novo que resulta da sobreposição de textos/discursos musicais distintos – um dos significados de “tropo” é a interpolação de material novo numa obra pré-existente. O concerto decorreu num complexo de três salas estando os pianistas na sala do meio e o público nas salas laterais.
Na primeira parte do concerto os dois pianistas recorreram a D’un cahier d’esquisses de Debussy e a vários fragmentos de Beethoven (esboços e exercícios técnicos retirados do caderno de notas Kafka e de quatro manuscritos inéditos) para com eles criarem os dois primeiros números do concerto. Apesar de algumas passagens resultarem interessantes – nomeadamente as heterofonias construídas a partir de fragmentos de Beethoven – o discurso musical foi híbrido e formalmente livre, faltando estabelecer relações mais profundas entre os diversos materiais que permitissem criar um discurso mais coerente e formalmente equilibrado.
A segunda parte do concerto consistiu na apresentação de Tropos sobre Quadros de uma Exposição de Mussorgsky. Chiantore executou a obra original e Ortolà realizou os “tropos”. A ordem dos andamentos estabelecida por Mussorgsky foi ligeiramente alterada, provavelmente com o intuito de criar maior coerência no discurso musical a dois pianos. O resultado foi bem conseguido, particularmente nas últimas cinco secções onde o novo material foi gerido de um modo mais eficaz e equilibrado.
2. Constituído por cinco instrumentistas e uma cantora, o ensemble Favola d’Argo – ensemble residente do festival – apresentou um programa que incluiu música ibérica e italiana: o Concerto para cravo e orquestra de arcos em Lá maior, de Carlos Seixas, a Cantada sola al Santísimo (Entre cándidos, bellos accidentes), de José de Nebra, a Sonata per violoncello e continuo in La minore, de Giovanni Battista Bononcini, e por último a Cantada sola al Santísimo (Qué contrario, Señor), de José de Nebra.
O grupo apresentou um conjunto de interpretações estilisticamente convincentes, com clara intencionalidade expressiva e boa interacção dos músicos. O concerto de Carlos Seixas revelou uma sonoridade equilibrada, não se ressentindo pelo facto de ter sido executado por uma formação de câmara. A sonata de Bononcini foi igualmente bem interpretada apesar da sonoridade global ter sido prejudicada pela inclusão do contrabaixo no contínuo – a agilidade e elegância da execução do contrabaixista Oriol Casadevall não foi suficiente para evitar uma sonoridade global demasiado grave e pesada.
Nas duas cantadas de José de Nebra, o soprano Rosana Orsini conjugou a boa articulação do texto devocional a uma execução vocal segura, respondendo às exigências técnicas e expressivas das árias. Destaca-se em particular a delicadeza com que interpretou a ária Con la paz tu amor convida e a energia colocada nas diversas passagens di bravura presentes em ambas as obras. Apesar de se ter verificado pontualmente alguma dificuldade de afinação entre os dois violinos o ensemble instrumental demonstrou uma sonoridade equilibrada e uma boa condução do discurso musical, tirando partido do pendor lírico e dramático das duas obras e sublinhando o conteúdo poético-religioso do texto vernacular.