A transformação da política: turbulência, transição e maturidade?
Se o PS desejar trabalhar propostas alternativas e ser responsável deverá simular o impacto económico e orçamental das mesmas.
Foi uma época em que tivemos um resgate, perdemos a soberania, em que a vontade de ir para além da troika levou a políticas erráticas e erradas. Um período de instabilidade e incerteza nas famílias, quer laboral quer de remunerações (salários ou pensões) e nas empresas, sobretudo ao nível das condições de financiamento e do quadro fiscal. A legislatura seguinte será, assim o esperamos, uma legislatura de transição pois os graves desequilíbrios estruturais estão longe de estar resolvidos. Uma fase de consolidação das expectativas, de estabilidade e previsibilidade, e de renovar da esperança no país. Para isso não basta um novo ciclo político, é preciso um Presidente que tenha a consciência da natureza do nosso regime, que não queira substituir-se ao Governo; uma assembleia estável e que dê apoio maioritário ao executivo; tribunais (Constitucional, de Contas, Supremos de Justiça e Administrativos) que exerçam as suas competências respeitando substantivamente a separação de poderes, parceiros sociais que entendam a situação ainda frágil do país e se vejam como parte da solução dos problemas nomeadamente em sede de concertação social. Nessa legislatura de transição, a economia cresce, o emprego aumenta, as desigualdades e a pobreza diminuem, os jovens deixam de abandonar o país, o peso da dívida no produto diminui e Portugal caminha decididamente para o equilíbrio das contas públicas. Esta fase de amadurecimento da democracia deverá ser uma fase de reforma e modernização do sistema político e dos seus atores principais, os partidos políticos. Ultrapassada a transição, poderemos finalmente alcançar a maturidade democrática. Porém, daqui a duas legislaturas o cenário poderá ser outro. À fase de turbulência económica e social, poderá seguir-se uma nova fase de instabilidade política, social, ou institucional. Desta insatisfação e instabilidade derivaria a incapacidade de se resolverem os problemas económicos, sociais e orçamentais do país e caminhar-se-ia, a passos largos, para o fim da II República tal como a conhecemos hoje.
2. Qualquer um dos cenários é possível mas para evitar o segundo é necessário uma “transformação da política”. Este é o título de um livro de Daniel Innerarity que, numa entrevista à Bárbara Reis em 2013 (Público de 15/09), toca num ponto importante: “ A política precisa dos técnicos, mas os técnicos não podem dominar a política. Como se sai desta armadilha? O problema é que o técnico e o político se configuraram como dois pólos distintos. Os técnicos recomendam - ou impõem - sem terem em conta a lógica política, e os políticos tomam decisões sem terem em conta os meios, as condições e as possibilidades técnicas. Esses dois pólos têm que funcionar num único momento. Estarem sempre juntos até à decisão final? Sim, making sense together. Em vez de serem dois aspectos separados, têm que trabalhar juntos. Temos que combater a tecnocracia e o decisionismo dos políticos, nenhum dos poderes pode estar acima do outro.” A transformação da política concretiza-se não apenas fazendo assentar o discurso político em propostas políticas fundamentadas tecnicamente, mas também enquanto produto de uma deliberação, logo pelo contraditório no espaço público. O amadurecimento da democracia passa por ultrapassar a fase da mera politics e caminhar na direção da policy, como bem argumenta Francisco Assis esta semana aqui no Público (30/04). A elaboração do cenário macroeconómico foi uma boa forma de implementar essa desejada simbiose entre políticos e economistas, isto é, essa transformação da política.
3. Nas democracias mais avançadas onde estes exercícios se fazem, a sociedade civil é muito mais forte, as fundações apoiam think tanks independentes e estes escrutinam este tipo de documentos (caso do Reino Unido, da Holanda). Como a nossa sociedade civil é fraca, assistimos à situação caricata de o principal partido do governo pedir a instituições públicas, financiadas por dinheiros públicos e com mandatos claros, que auditem o cenário macroeconómico de 12 economistas. Teríamos muito gosto de ver as nossas propostas avaliadas pela UTAO ou pelo Conselho de Finanças Públicas (CFP), mas parece-nos que tal não irá acontecer no CFP, pois é uma entidade independente que estaria a extravasar o seu mandato. Seria possível no caso da UTAO, que está na dependência da Comissão de Orçamento e Finanças, se a maioria parlamentar exigisse à UTAO essa análise. Tratar-se-ia de usar fundos públicos para benefícios privados. O Instituto de Políticas Públicas poderia fazer esse contraditório, mas há um óbvio conflito de interesses. De qualquer modo promoveremos o debate no ISEG (dia 6) e contaremos com Vítor Bento para animar o contraditório.
4. O relatório não é nem um programa eleitoral nem um Programa de Estabilidade. É tão só uma simulação macroeconómica de um conjunto de políticas públicas para promover o crescimento, o emprego, a equidade e a justiça social. A esquerda radical tem sobretudo dois tipos de críticas: a de que não considera a reestruturação da dívida e que mantém a austeridade. Embora, sem o afirmar, é a estratégia Syriza da audácia total, que em breve veremos como acabará. Considero desejável a renegociação da dívida, e acho que ela deverá constar do programa do PS, no quadro de uma solução multilateral da zona euro. Porém, no nosso exercício esse não poderia ser o cenário central pois não depende de nós. Quanto à austeridade, as nossas propostas são de um alívio mais rápido do que o proposto pelo governo, mas não são as do laxismo orçamental. Uma coisa é dizer que não se conseguem alcançar saldos primários muito elevados, outra, muito diferente, é usar o histórico das finanças públicas em democracia para argumentar que não podemos fazer melhor que no passado na frente orçamental. Isto equivaleria a afirmar que estamos condenados a ser um país periodicamente falido e com perca de soberania.
5. As críticas mais substantivas têm a ver com as medidas relacionadas com a segurança social. Uma opção política assumida foi não pôr em causa o atual modelo e explorar até ao limite as possibilidades de equilibrar o regime contributivo da segurança social (pois o não contributivo é, e deve ser, financiado por impostos). Isto far-se-á pela convergência rápida entre os dois regimes (Seg. Social e CGA), pelo alargamento da condição de recursos nas prestações sociais, pela revisão do factor de sustentabilidade e pelo combate à evasão contributiva. A outra opção tomada é alargar a base de financiamento do regime contributivo, que deixa de assentar apenas nas contribuições sociais. Há riscos (respondendo a Daniel Bessa no Expresso de sexta)? Há. Mas uma coisa é certa - não se pode discutir a segurança social desligada do mercado de trabalho e este tema deve ser objeto de compromisso social e político alargado.
6. O PS tem agora cerca de um mês para preparar o seu programa e a diversidade de opiniões é natural e salutar. Ainda ontem, aqui, Pedro Nuno Santos se manifestou contra a redução da TSU das empresas, não explicando a sua alternativa para promover o crescimento e emprego. Aquilo que penso que não deverá acontecer em relação às propostas apresentadas é a “pesca à linha”. Se o PS desejar trabalhar propostas alternativas e ser responsável deverá simular o impacto económico e orçamental das mesmas. Esta é a minha leitura do que António Costa disse aquando da apresentação do cenário macroeconómico.
P.S.: Esta semana foi aprovada em Conselho de Ministros a nova proposta de Lei de Enquadramento Orçamental (LEO). À porta fechada, uma comissão trabalhou e o Governo decidiu sem nenhuma discussão no espaço público nem de especialistas economistas. À boa maneira portuguesa, quando uma lei não é implementada, faz-se outra para a substituir. A orçamentação por programas em Portugal, prevista na LEO, é uma ficção (a abordar noutro artigo).
Professor do ISEG e presidente do Instituto de Políticas Públicas TJ-CS